Por que Judas beijou Jesus?

 


O Beijo da Unção

Quando Judas chega ao Getsêmani, ele diz à multidão que o acompanhava: “Aquele que eu beijar (φιλήσω; philéso) é ele; prendei-o.” O verbo usado aqui, φιλέω (philéō), tem um sentido mais amplo do que apenas “beijar”; trata-se de um amor afetuoso, muitas vezes fraternal. Mas quando Lucas descreve a cena do beijo, ele usa uma forma intensificada: κατεφίλησεν αὐτόν (kat-ephílesen autón), que pode ser traduzido como “beijou calorosamente”, “beijou com insistência” — o prefixo kata- dá intensidade ao gesto, como quem se demora no contato.

Essa escolha linguística revela mais do que um simples sinal combinado. Há uma ironia cortante: philéō é um verbo que expressa amor, ternura e vínculo íntimo — mas Judas o utiliza como veículo de traição. É como se ele profanasse a linguagem do amor para consumar o abandono. Quando Yeshua, com profunda tristeza, pergunta: “Judas, com um beijo (φιλήματι; philémati) tu trais o Filho do Homem?”, o termo philéma significa literalmente "beijo", mas é derivado da mesma raiz de philéō — amor. A dor do Mestre, portanto, não é apenas pela traição, mas pela distorção do amor.

O Gesto de Samuel

Há, nas Escrituras Hebraicas, uma cena surpreendentemente paralela. Em 1 Samuel 10:1, o profeta unge Saul como rei e o beija: “Então tomou Samuel um vaso de azeite, e o derramou sobre a cabeça dele, e o beijou (ἐφίλησεν αὐτὸν; ephílesen autón), dizendo: Porventura não te ungiu o Senhor por chefe sobre a sua herança?” O gesto do beijo aqui é simbólico: trata-se da ratificação pública da escolha divina, da concessão da autoridade messiânica (משיח; mashiach — “ungido”).

Samuel beija Saul logo após ungi-lo com óleo — o שֶׁמֶן (shemen) da unção real. O beijo, nesse contexto, sela a aliança e confirma a missão real. O verbo hebraico correspondente a beijar, נָשַׁק (nashaq), também possui o significado de “armar” ou “preparar-se para batalha” em contextos diferentes, o que pode intensificar a carga profética do gesto: Saul é beijado para governar e guerrear em nome do Senhor.

O Beijo e o Messias

É profundamente simbólico que Jesus, o Messias (do hebraico משיח; mashiach), o “Ungido”, receba um beijo antes de sua “exaltação” — não à glória terrena, mas à cruz. Enquanto Samuel beija Saul como início de um reinado político e militar, Judas beija Jesus na entrada de um reinado espiritual e sacrificial. Há, portanto, uma recapitulação profética: o gesto de Judas ecoa o gesto de Samuel, mas em inversão dramática. O beijo de unção se torna beijo de prisão; o início do reinado se dá pela entrega à morte.

Ainda assim, no plano divino, esse beijo revela a realeza de Cristo. O título “Rei dos Judeus” (βασιλεὺς τῶν Ἰουδαίων; basileùs tōn Ioudaíōn) é mencionado pelos soldados em escárnio, mas no céu, é proclamado como verdade eterna. Assim como Saul foi escolhido para salvar seu povo dos inimigos (σώσεις; sóseis), Jesus, o verdadeiro Rei, vai salvar (σώσει; sósei) seu povo dos pecados (Mateus 1:21). A raiz verbal σῴζω (sōzō) — “salvar” — é central na missão de Jesus, conectando-se ao nome hebraico Yeshua (ישוע), que significa “o Senhor salva”.

Redenção Divina

O beijo de Judas deveria ser um ato de dissimulação — e foi. Mas o que ele simbolizava, inconscientemente, ia além da traição. Deus converteu o gesto mais perverso em uma semente de redenção. Aquele beijo — destinado a entregar Jesus à morte — torna-se, por contraste, um prenúncio de Sua realeza eterna. A morte não é derrota; é entronização. O trono de espinhos, o cetro de cana, a coroa invertida — tudo isso se transforma no paradoxal anúncio do Reino de Deus.

Assim, o Getsêmani, cujo nome significa “prensa de azeite” (גַּת שְׁמָנִים; Gat-Shemanim), torna-se o local da unção final. O óleo não é mais derramado sobre a cabeça, mas espremido da alma do Ungido, em suor de sangue. E o beijo, sinal de traição, é transfigurado no símbolo que inaugura a missão real: Jesus reina desde a cruz.

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