Exegese do texto do Filho Pródigo


Este artigo procura fornecer por meio do instrumental exegético e da mediação do conceito de fronteira uma análise do contexto da narrativa parabólica que se encontra no evangelho de Lucas 15. 11-32. Tal parábola evidencia um conflito entre dois grupos em busca da identidade dentro de uma comunidade cristã em Antioquia.

Uma rápida visão acerca da estrutura de Lc 15. 11-32 O trecho de Lc 15. 11-32 apresenta uma parábola dupla, e cada metade tem a sua estrutura própria. A primeira metade encontra-se nos versículos 11-24 e a segunda nos versículos 25-32. As duas partes são semelhantes, mas diferentes. Bailey organiza essa parábola dupla em estrofes que combinam uma com a outra usando paralelismo invertido ou em degrau e outras correspondências semânticas. Dessa forma, a estrutura da primeira metade é a seguinte:

A - Havia um homem que tinha dois filhos

1 Um filho é perdido (v.12)

2 Bens gastos com uma vida cara (v.13)

3 Tudo perdido (v.14)

4 O grande pecado; cuidar de porcos para os gentios (v.15)

5 Total rejeição (v.16)

6 Mudança de mente (v.17)

6’ Arrependimento inicial (v.18-19)

5’ Total aceitação (v.20)

4’ O grande arrependimento (v.21)

3’ Tudo ganho; restaurado a filiação(v.22)

2’ Bens usados na alegre celebração (v.23)

1’ Um filho é achado (v.24).

A segunda metade é uma repetição da primeira. O princípio da inversão é usado outra vez. Vejamos sua estrutura literária.

B - Ora, o filho mais velho estava nos campos

1 Ele vem (v.25, 26)

2 Teu irmão- ileso- uma festa (v.27)

3 Um pai vem para reconciliar (v.28)

4 Queixa I (como me tratas) (v.29)

4’ Queixa II (como tratas a ele) (v.30)

3’ Um pai tenta reconciliar (v.31)

2’ Teu irmão- ileso- uma festa (v.32)

1’ ............................ (faltando)

As ligações entre as estrofes são claras. No centro apoteótico as duas queixas combinam linha a linha em paralelismo em degrau. Na estrofe 3 o pai vem para reconciliar-se, enquanto que na 3’ ouvimos um discurso de reconciliação. A estrofe 2 é
um relatório da festa dado por um rapaz, e em 2’ o pai defende o fato de ter iniciado esses mesmos eventos. O término está faltando: não há estrofe 1’, algo está inacabado.

Não à exclusão
A porção bíblica de Lc 15.11-32 é uma narrativa parabólica. Tal narrativa trata de um acontecimento de caráter único e não costumeiro o qual é narrado pormenorizadamente. Constata-se uma tendência de apresentar os personagens em determinada relação social (estrutura: superior, inferior; ou direito, subalterno), por exemplo, a figura paterna. Com freqüência são apresentados dois grupos, um dos quais é preciso escolher. O seu fundo literário geral é o gênero das fábulas antigas, na medida que se referem as seres humanos. Muitas dessas fábulas começam, como a parábola de Lc 15.11-32, com "havia um homem". As narrativas parabólicas raramente são autônomas com relação ao contexto e tem amiúde função retórica, argumentativa. Para a apreciação sistemática das parábolas, isso acarreta a necessidade de se prevenir contra a tendência de isolá-las de seu contexto. Tal isolamento teria por conseqüência a superestimação do peso teológico da parábola. Trata-se de problemas fundamentais como a riqueza, a compaixão com os irmãos e com o próximo em geral e a justificação da abertura para pecadores e pagãos. E sempre está em jogo a unidade da comunidade. Não se justifica a oposição daqueles que já estão dentro há mais tempo contra a admissão ou equiparação de novatos menos privilegiados.

Situando o evangelho
Não há consenso acerca da autoria, do local da composição e da datação do evangelho de Lucas. Diante da impossibilidade de identificação do autor, o mais sensato seria admitir como Kummel que somente uma coisa se pode afirmar com certeza a respeito da sua autoria: trata-se de um cristão proveniente da gentilidade.m relação ao local de autoria, situo este evangelho na cidade de Antioquia, visto que o Livro de Atos guarda uma forte memória da igreja localizada nesta cidade (Atos 11.19-26; 13.1-3) e também por possuir todos os aspectos de uma cidade fronteiriça. 5 Assim como não há consenso quanto a localização do evangelho de Lucas, também não há quanto a sua datação. Mesters o situa em torno do ano de 85.6 Storniolo entre 80 e 90.7 No entanto, uma posição mais cautelosa nos leva a datá-lo entre os anos 70 e 90.


Entre dois mundos
Herdeiro do pensamento paulino anti-romano, o autor de Lucas inverte a cosmovisão de sua época de que Roma seria o centro do mundo habitado e que a Judéia seria apenas um local desprezível nos confins da terra. Para ele o centro ou a "polis" passara a ser a Judéia em detrimento de Roma (asty). Entre estes dois extremos situava-se a cidade de Antioquia (khora), lugar em que provavelmente foi composta a obra de Lucas-Atos e uma região onde as comunidades eram diásporas e as fronteiras na realidade não imobilizavam, mas, curiosamente eram constantemente atravessadas. A obra de Lucas reflete as características de fronteira fluída desta região. Assim, para o autor de Lucas Jerusalém seria a polis, Antioquia a khora e as regiões do mediterrâneo incluindo Roma a asty.

Em Antioquia se deu a interseção entre o cristianismo judeu e o cristianismo do mediterrâneo. Este encontro não envolveu apenas pessoas como também raças, continentes e culturas. Por ser uma comunidade fora do controle de Jerusalém, a comunidade de Antioquia representava um cristianismo marginal (não oficial) e, por isso, mais aberto ao mundo do que o cristianismo praticado pela comunidade judaico- cristã. Era uma comunidade mista na qual conviviam no mesmo espaço gentios e judeus, ricos e pobres, homens e mulheres. Por conta disso, havia tensões internas e externas que sacudiam o seio desta comunidade. Os conflitos produzidos no interior da comunidade de Antioquia eram o reflexo da elaboração de fronteiras9 entre grupos, principalmente entre o cristianismo judaico e o greco-romano. O evangelho de Lucas é o resultado de um processo sincrético que procura resolver estas constantes tensões.

O conflito na comunidade lucana parece gravitar em torno da aceitação na comunidade de um grupo de pessoas oriundas do mundo gentílico que não cumpriam as exigências das leis de pureza judaicas. Estas leis tinham grande importância porquanto eram símbolos da identidade de grupo dos judeus.10 Após a guerra Judaica e a destruição do templo, o conceito de pureza, que era espacial-geográfico, passa a ser ritual. O conceito de sagrado, que era ligado à terra e ao espaço, passa a se ligar, a práticas rituais ligadas a pureza. Assim, a violência e a exclusão eram dirigidas a todos que não cumpriam os princípios de pureza.11

Em contraste a postura judaica exclusivista, o autor de Lucas nos apresenta parábolas que denunciam tal arbitrariedade e propõe uma inversão da posição dos judeus em relação aos gentios. O cumprimento cego das exigências da lei pelos judeus não alegraria a Deus. A celebração da vinda do reino tomou lugar na participação da mesa de Jesus com os rejeitados, por isso, o zelo excessivo no cumprimento da lei judaica tornou-se uma barreira separando os gentios rejeitados e os judeus contribuindo para ausência deste último grupo na mesa.ejamos, então, o que o texto nos fala.



Pai e filhos (parte I)
15.11-24

A parábola em estudo inicia no v.11 com um "um certo homem" que era pai de dois filhos. Ao introduzir os dois filhos no início do relato, o autor prepara o leitor para o papel que ambos desempenharão na trama.

No verso 12 somos confrontados com o filho mais jovem pedindo sua parte da herança. As leis a respeito de tais transações não são muito claras, porém é bastante claro que a pretensão do filho mais novo era desrespeitosa e irregular. De acordo com a lei mosaica que pode ter sido designada para proteger o direito do irmão mais velho contra o favorecimento do filho mais novo, o irmão mais velho tinha direito ao dobro da herança (Dt 21.17). Segundo J. Jeremias havia duas formas de transmissão de posse de pai para filho: por testamento ou por doação entre vivos. Neste último o interessado recebia imediatamente o capital e somente depois da morte do pai recebia o gozo do uso. O filho recebia o direito de posse, seu pai não podia vender os campos, e não o direito de dispor, se o filho vendesse a propriedade, o comprador tomaria posse somente depois da morte do pai. Portanto, o gozo do uso ficava com o pai até a sua morte.13

Apesar dessas provisões Sirach, um sábio judeu (190 a. C.) previne contra a prática repartir a herança enquanto o pai ainda está vivo ligando isto a questão da honra do pai.
14 Isto nos levanta a suspeita de que tal prática seria comum. No entanto Bailey em sua analise cultural do Oriente Médio demonstra que tal prática era algo irregular ao extremo. Ele admite que o texto de Sirach não demonstra que o procedimento era comum. Antes, reflete a postura predominante da comunidade. Além disso, o texto de Sirach apresenta o pai distribuindo uma herança e não um filho pedindo por ela. De fato, o filho mais novo desejava a morte do pai, porquanto a noção de passar uma herança enquanto alguém estava em boa saúde era algo impensável.[O filho mais novo estava quebrando os laços familiares e tratando o seu pai como se estivera morto. Assim sendo, a resposta do pai no v.12b é muito apropriada, "e ele lhes dividiu a vida


Dividir a herança enquanto o pai estivesse vivo era um grande insulto e o irmão mais velho deveria recusar a petição de seu irmão e intervir como um conciliador. Por sua vez, o pai cede ao filho a posse e a disposição dos bens demonstrando um ato de amor sem precedente que dá liberdade até para rejeitar a pessoa que ama enquanto o filho mais velho aceita silenciosamente sua parte negando-se a desempenhar o seu papel de conciliador deixando evidente que havia problemas no seu relacionamento tanto com seu pai quanto com seu irmão. Ambos os filhos fracassaram na tentativa de viverem juntos, em unidade com seu pai. 17

A ação do filho mais jovem relata seu distanciamento e alienação progressiva de sua família, má administração de sua herança e decadência em pobreza e privação. O v.13 nos informa primeiramente que ele ajuntou
seus bens e partiu para uma terra distante cw,ran makra.n19.. A fim de entendermos este termo é necessário que haja uma compreensão do que viria a ser uma polis grega. Para Chevitarese, a polis era um espaço territorial urbano marcado pela ação e tensão sociopolítica. Apresentava posições marcadamente conservadoras baseadas em relações fundadas nos valores de honra e vergonha. A polis também possuía uma Khora que era sua zona rural a qual fazia fronteira com a asty ou terras marginais. Esta área por causa da imprecisão fronteiriça era um lugar de intensas disputas e um lugar onde as fronteiras eram fluídas.20

Ao contrário da polis, nesta zona fronteiriça as posições não eram conservadoras, porquanto refletiam a interação vivida com as outras terras marginais. Nesta zona fronteiriça havia espaço para a ação no manejo da cultura;

Para o autor de Lucas esta "terra distante" representava uma terra gentílica, a própria Antioquia, por ser uma cidade fronteiriça. Além disso, representava a alienação do filho mais novo de sua família. J. Jeremias demonstra que não havia nada de errado com a emigração no primeiro século, devido a fome freqüente na palestina e as condições de vida mais favoráveis nas grandes cidades comerciais, muitas pessoas mudaram-se para o exterior.


Em segundo lugar, o v.13 nos informa que ele gasta rapidamente sua herança "vivendo dissolutamente". Ademais, o começo de uma grande fome levou o jovem a enfrentar grave necessidade.

Finalmente no v.15, sem o apoio da família, ele procura trabalho com um cidadão local. Trabalhar para um gentio era algo proibido para um judeu (At 10.28), um fato exemplificado pela sua baixa consideração pelos coletores de impostos (Lc 15.1). Desesperado, o jovem aceita alimentar os porcos, animal considerado impuro e, por isso, um trabalho degradante para um judeu (Lev 11.7; Dt 14.8; 1 Mac 1.47). Portanto, esse rapaz se viu forçado a romper com a tradicional prática e vida judaica (sábado, etc.).24

O v.16 retrata de forma dramática a completa queda e a desesperada necessidade enfrentada pelo filho mais novo, o fato de ninguém lhe dar comida o levou a desejar s
atisfazer-se com alfarrobas que os porcos comiam. A necessidade de ter o que comer fez com que o filho mais novo perdesse a sua dignidade e recebesse tratamento pior do que os porcos. Essa era a condição de vida de milhões de pessoas no império. Segundo Crossan, no Mediterrâneo oriental, a luta pelo controle do pouco excedente agrário existente era, em geral, mais impiedosa nos limites das grandes cidades. As vítimas eram, de maneira quase inevitável, os camponeses; e o resultado era a condição crônica de escassez e desnutrição, sempre prestes a se transformar em fome e epidemia. Se existia, a abundância só se encontrava entre os ricos e seus clientes nas cidades. É provável que neste ponto da parábola, o autor faz uma crítica ao sistema econômico greco-romano que favorecia uma pequena elite em detrimento da grande maioria da população que vivia na miséria.
Não há consenso quanto ao que realmente são estas alfarrobas, no entanto, Bailey sugere que seja simplesmente um arbusto no qual os porcos podem cavoucar a terra procurando as suas bagas. Elas podem ser comidas pelo seres humanos, mas é amarga e não tem valor nutritivo. O pródigo não conseguiu encher o estômago com elas.





No v.17 através de um solilóquio, um dispositivo narrativo comum nas parábolas lucanas, podemos ver diretamente o coração do personagem (ex. Lc 12.17-19). Assim, o rapaz repensa a sua situação, "cai em si" e percebe que é melhor voltar para casa. Porquanto, na casa de seu pai até mesmo os trabalhadores mi,sqioi tinham abundância de comida. Para Jeremias a expressão "e caindo em si" eivj e`auto.n de. evlqw.n tanto em hebraico como em aramaico aponta para o significado de "converter-se".27 Aqui a fome do rapaz estimula o arrependimento. Não existe uma dicotomia entre fome e arrependimento. No entanto, existe uma tensão no entendimento representado nas três parábolas de Lucas 15. Nas duas primeiras parábolas, a ovelha e a moeda são simplesmente encontradas, elas não desempenham um papel ativo. Porém, na parábola ora estudada o filho realiza o movimento inicial e é incondicionalmente recebido pelo seu pai.

O monólogo prossegue no v.18, o rapaz resolve despertar da sua letargia e desespero, isto fica evidente pela expressão "levantar-me-ei e irei" avnasta.j poreu,somai. A frase "pequei contra o céu e contra ti" h[marton eivj to.n ouvrano.n kai. evnw,pio,n sou 10

(revela a percepção de que o erro cometido não era apenas contra o seu pai pois ele havia violado o quinto mandamento (Dt 5.16).

O rapaz finaliza seu pensamento no v.19, aqui dominado pela vergonha ele não se vê no direito de ser restaurado como filho e sim como "um dos trabalhadores assalariados"
e[na tw/n misqi,wn de seu pai. Sendo assim, no v.20, ele decide levantar e voltar para seu pai. Aqui o ponto de vista muda do filho para o pai.

Ao avistar seu filho, "porém ainda distante" Eti de. auvtou/ makra.n avpe,contoj, o pai não se contenta em esperar passivamente, ele corre para encontrá-lo e o abraça calorosamente. Observe que o pai vai ao encontro do filho enquanto estava ainda distante, isto é, na Khora e não na polis. A reconciliação não se dá na polis e sim na Khora. Na antiga Palestina, o fato de um homem correr era visto como inconveniente ou como uma perda de dignidade.28 O pai estava preparado a violar tradições para reconciliar e dar boas vindas ao seu filho que se encontrava perdido.

28 The New Interpret’s Bible, p. 302.

29 Cf. BAILEY, As parabolas de Lucas, p. 230.

O caráter do pai é definido pelas expressões "teve compaixão" evsplagcni,sqh, "inclinou sobre seu pescoço" evpe,pesen evpi. to.n tra,chlon e "beijou repetidamente" katefi,lhsen refletindo, assim, seu coração compassivo, uma compaixão que precede a confissão do seu filho. A atitude amorosa do pai ao abraçar e beijar seu filho considerado imundo, e, conseqüentemente morto pelas leis de pureza judaicas, era uma crítica contra a postura judaica de violência e exclusão dirigida aqueles que não se enquadravam nas regras de pureza. O perdão imerecido era o oposto do que era esperado. Em vez de provar a hostilidade, o rapaz entra na aldeia sob o cuidado e proteção do pai.29

A seguir, o pai passa instrução para que seus servos peguem a melhor túnica, um anel e sandálias para seu filho. É um sinal para o resto da aldeia de que o rapaz será tratado como filho novamente (Gen 41.42; 1 Mac 6.14-15). Ele é um homem livre, um convidado honrado, um filho. A demonstração do extremo amor do pai continua (v.23). 11

O pedido para matar um novilho cevado30 representa o clímax de sua hospitalidade. Para Greg Forbes o verbo "regozijemo-nos" euvfranqw/men que encerra este versículo é de extrema importância, pois:

30 Cf. FORBES, Greg. Repentance and Conflict in the Parable of the Lost Son (Luke 15.11-32), in: Journal of the Evangelical Theological Society, n.42, 1999, p. 221. mo,scon era um animal novo ou um novilho e ser engordado siteuto,n seria um animal mantido para ocasião especial.

31 Id. Ibid., p. 221.

32 SCOTT, B. B. Hear Then the Parable. Minneapolis, Fortress, p. 119.

33 É provável que a palavra pai,dwn signifique "menino" ao invés de "servo" porquanto ele responde "seu pai" em vez de "meu mestre".

"aponta para uma celebração comunal, um tema que conecta cada uma das três parábolas deste capítulo. O banquete serve como uma oportunidade para reconciliar o rapaz com a aldeia inteira. Além do que, a celebração e a imagem festiva contrasta com as alfarrobas e ajuda a sublinhar as extremidades do perdido-achado, do pecado-arrependimento e da alienação e restauração. Dando o contexto de perdão-salvação, a imagem aqui pode também carregar ecos do banquete messiânico" ( Lc 13.28-29; 14.15-24).31

As palavras do pai no v.24 traduz o motivo da festa "porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado". O jovem rapaz estava culturalmente e fronteiriçamente "morto" nekro.j e completamente "perdido" avpolwlw.j, portanto, separado da comunhão da sua família e do amor de seu pai. No entanto, esta situação aparentemente irreversível se reverteu. Por isso, a celebração inicia.

Pai e filhos (parte II)

15.25-32.

A celebração serve como estímulo para a segunda parte da parábola. No verso 25, a cena muda para o filho mais velho que está voltando de seu trabalho no campo. Esta imagem evoca o quadro de um filho ainda em casa, porém distante de seu pai.32 Ao se aproximar ele ouve a celebração, música sumfwni,aj e dança corw/n. Ele chama um dos meninos33 e pergunta o que estava acontecendo (v.26). 12

A resposta segue no v.27 "teu irmão está presente, e matou teu pai o novilho cevado, porque em boa saúde o recebeu de volta". No v.28 o filho mais velho irado, pelo rápido perdão oferecido ao seu irmão, recusa entrar na casa para participar da celebração. O imperfeito "queria" h;qelen capta sua persistente recusa em entrar para juntar-se na celebração.34 Novamente a trama é caracterizada pela distância e separação entre o filho e o pai. Bailey observa que a ira e a recusa de participar da celebração eram insultos profundos contra o pai diante do público.35 Contudo, o paralelismo continua quando mais uma vez o pai se humilha ao sair de sua casa para se encontrar com seu filho, uma demonstração de amor inesperado. Em vez de censurar seu filho ele suplica para que entre. O imperfeito "continuava a rogar" pareka,lei corresponde a h;qelen. A recusa persistente do filho vem ao encontro da persistente suplica do pai.36

34 Cf. FORBES, Repentance and Conflict in Parable of the Lost Son, p. 222.

35 BAILEY, As parabolas de Lucas, p. 242.

36 Cf. FORBES, Repentance and Conflict in Parable of the Lost Son, p. 222.

37 The New Interpret’s Bible, p. 303.

38 THAYER, Joseph Henri. A Greek-English Lexicon of the New Testament. International Bible Translator, 1998, edição eletrônica,verbete 4349.

Aqui no verso 29 o filho mais velho começa a dar forma a sua ira. Em todo o tempo o irmão mais novo se dirige a seu pai respeitosamente "Pai", mesmo em seu solilóquio (v. 12, 18, 21). Entretanto, seu irmão mais velho recusa em reconhecer sua relação com o seu pai e com o seu irmão. Ele abre seu discurso com a palavra "veja" ivdou. em vez de "Pai" path.r.37 Mesmo assim, o irmão mais velho julgava-se um filho modelo e servidor de seu pai. O uso do verbo "sirvo" dou,louj demonstra que ele não entendia o que significava a relação entre pai e filho. De fato, ambos os filhos acreditavam de forma errônea que o seu pai os aceitariam por agirem como servos. A ironia lucana transparece na continuação do discurso do filho mais velho.

Pouco depois de envergonhar seu pai em público, ele alega que nunca havia desobedecido uma só das ordens de seu pai. Indignado, no v.30, ele dirige suas criticas a seu irmão referindo-se de forma depreciativa "este teu filho" ui`o,j sou ou-toj preocupando-se apenas com a propriedade desperdiçada com as meretrizes. A palavra "meretrizes" pornw/n metaforicamente pode assumir o significado de "idolatria (Ap 17.5)"38. Talvez esta palavra foi inserida aqui não simplesmente para denotar "uma 13

mulher que vende seu corpo", mas, faz menção de forma pejorativa a nação gentílica considerada idolatra e impura pelos judeus. Em sua fala final o filho mais velho novamente demonstra a sua decepção por seu pai ter matado um novilho cevado para festejar o retorno de seu irmão, na sua concepção, este ato demonstrara certa preferência do pai pelo seu filho mais novo.

Embora o filho mais velho não tenha se dirigido ao pai de forma respeitosa "Pai", a primeira palavra do pai "filho"
te,knon demonstra todo o seu afeto por ele (v.31). A sentença quiástica sublinha o relacionamento entre eles: "tu sempre comigo estas e tudo o que é meu é teu." Com efeito, o pai relembra ao filho mais velho que por direito tudo lhe pertence porquanto seu irmão mais novo já havia recebido a sua parte na herança. As ações do pai demonstram o seu amor por ambos os filhos. O novilho cevado não foi morto porque o pai tinha alguma preferência pelo filho mais novo, mas porque ele havia retornado com vida (v.32). Neste mesmo verso o pai não está somente justificando a festa, antes está convidando o seu filho mais velho a juntar-se a celebração. Com a frase "esse teu irmão" avdelfo,j sou ou-toj o pai enquadra o filho mais velho na mesma categoria do mais novo, eles são irmãos, e relembra o relacionamento que o filho mais velho teimava ignorar (v.30). O mais velho não tem o direito de fazer distinção. Se ele quer tê-lo como pai é mister que também aceite a seu irmão. A parábola não diz qual foi a resposta final do irmão mais velho. Ela deixa em aberto. Caberia ao leitor da parábola a tarefa de dar a resposta.

Conclusão
Assim sendo, nas entrelinhas de nosso texto podemos vislumbrar lampejos do contexto em que estava inserida uma comunidade cristã fronteiriça. A atitude do pai amoroso, do filho mais novo e do filho mais velho nos remete respectivamente a ação de Deus, da comunidade greco-romana e da comunidade judaica em Antioquia. Ambas as comunidades tinham posições antagônicas acerca da identidade da comunidade cristã. A proposta mais tolerante da comunidade greco-romana entrava em conflito com as leis de pureza dos judeus cristãos, as quais tornavam a comunidade judaica menos flexível a incorporação de gentios. Os judeus cristãos enrijeceram fronteiras geográficas e mentais que os distanciavam da prática da comunhão de mesa com os gentios da 14

comunidade. Eles queriam evitar qualquer processo de assimilação, porquanto correriam o risco de perder a sua própria identidade.39 Devido ao conflito gerado na comunidade de Antioquia, o autor lucano apresenta um projeto audacioso e inclusivo para ambos os grupos. Sua intenção era romper as fronteiras que geravam violência e exclusão. Tanto o filho que estava geograficamente longe de Deus (na asty=mundo greco-romano) quanto o que estava perto (na polis=Jerusalém) desobedeceram ao mandamento divino. O perdão do pai, Deus, seria somente concedido por meio do reconhecimento de tal erro (na Khora=Antioquia) e da comunhão de mesa e, dessa forma, ambos seriam aceitos pelo pai no banquete messiânico.40

39 COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos-vol. 1:1-12. Petrópolis, Vozes, 1988, p. 13.

40 Id. Ibid., p. 13.
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http://www.revistaancora.com.br/revista_5/Filho%20pr%C3%B3digo%205%20edi%C3%A7%C3%A3o.pdf

Comentários

  1. Muito bom. Muito proveitoso esclarece muitas coisas

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  2. Me senti muito abençoado pela abordagem feita. Dá margem para abordarmos vários temas. Muito obrigado.

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