Escravidão e Hierarquia na Antiguidade Bíblica
Não há evidência de que a escravidão era mal que precisasse
ser erradicado por qualquer nação civilizada. Na verdade, a escravidão nunca
foi “problema” na antiguidade, embora alguns autores a vissem com preocupação,
como demonstram Davis (2003) e Vendrame (1981).
A primeira dificuldade que se defronta ao estudar o fato da
escravidão na Bíblia vem do sentido das palavras. O termo hebraico ebed – que significa escravo – só
permite sua compreensão segundo o contexto: pode tratar-se de verdadeira
escravidão no sentido técnico de sujeição involuntária ou da simples
dependência do empregado doméstico ou do trabalhador que presta seu serviço em
troca de um salário.
A escravidão era exemplo de subordinação completa de um
indivíduo a outro, da negação da autonomia jurídica pessoal. Os hebreus
provavelmente foram o primeiro povo a considerar Deus como um nobre senhor que
podia ajudar e orientar seus “escravos”, ou seja, os próprios hebreus.
Passagens da Torah (Velho Testamento)
ilustram que personalidades religiosas judaicas como Abraão, Ló, Moisés, Jó e
Davi foram designados como escravos do Senhor.
De fato, Moisés sempre lembrava o povo hebreu de que foram
escravos no Egito, ressaltando a importância de Deus, que libertou os hebreus
em troca de obediência e abundância no futuro (Deuteronômio, 5: 15 e 15:15). A Torah legitima, todavia, a escravização
de outros povos, mas nunca a escravização de hebreus, visto que estes são
acolhidos na Bíblia como o povo escolhido por Deus para perpetuar as palavras
deste na Terra, como consta em Deuteronômio.
Além disso, dos filhos dos
estrangeiros que se hospedam entre vós, deles comprareis, e de suas famílias
que estão com vocês, que geraram em vossa terra: e eles serão vossa
propriedade. E deixá-los-ei como herança para vossos filhos depois de vós, para
mantê-los como propriedade; deles tereis seus escravos para sempre: mas sobre
vossos irmãos, os filhos de Israel, não tereis domínio, um sobre o outro, com
severidade (Levítico, 25:44-46).
Flávio Josefo observou que não era justo os judeus
tornaram-se escravos de seu próprio povo, uma vez que Deus tornou tantas nações
subordinadas a Israel. Um olhar atento em Êxodo comprova que o hebreu podia ser
escravizado, mas no sétimo ano deveria ser alforriado (Êxodo, 21:2). Não se sabe
ao certo o porquê do sétimo ano, mas uma interpretação cabalística sugere que o
número sete está ligado ao dia em que Deus descansou após criar o mundo.
Ademais, a Torah não contém protesto
algum explícito contra a escravidão. Pelo contrário, em Êxodo, há partes
chamadas “Lei acerca dos Servos” e “Leis acerca da Violência”, nas quais consta
como tratar os escravos.
Nos apócrifos, é
dito aos senhores para tratarem seus escravos com bondade, o que é repetido no
Talmude – espécie de Torah oral do
povo judeu. No Eclesiástico (33:25-33) também está escrito que as correntes
pesadas presas aos pés deveriam ser colocadas nos maus escravos, e
Forragem e gravetos e cargas para o
asno, Pão e disciplina e trabalho para o servo!
Ponha teu servo para trabalhar, e ele
procurará descanso; Deixe suas mãos ociosas, e ele procurará liberdade!
Os escravos dos judeus eram hierarquicamente diferentes. Os
netinîm, ou oblatos, demonstram os
diversos graus de sujeição dos servos em Israel e a possibilidade da sua
integração. Os netinîm foram colocados à disposição dos levitas por
Davi e seus príncipes. Esse grupo de escravos trabalhava nos serviços
religiosos com os sacerdotes e os levitas, e figuravam como pessoas que haviam
se afastado dos gentios para abraçar a lei de Deus. A origem deles é obscura,
mas se acredita que eram prisioneiros de guerra (Vendrame, 1981). O Talmud menciona os netinîm com desprezo e proíbe o matrimônio dos judeus com eles. Com
o passar do tempo, todavia, a condição social desses escravos foi subindo à
medida que eles foram integrando-se à comunidade judaica, de cuja vida e
vicissitudes participavam, até adquirirem o status
de israelitas e a conseqüente liberdade (Vendrame, 1981).
Nem sempre os prisioneiros de guerra eram suficientes.
Recorria-se, muitas vezes, à compra de escravos nas nações vizinhas. Os hebreus
praticavam a compra de escravos como consta na aliança com Deus, segundo a qual
todo varão deveria ser circuncidado, inclusive o “comprado a dinheiro”. No livro
do Levítico, permite-se expressamente a compra de servos e servas das nações
circunvizinhas e mesmo dos estrangeiros residentes em solo israelita. Os
escravos adquiridos passavam a integrar definitivamente a propriedade que é
transmitida como herança aos filhos (Vendrame, 1981). A maioria dos escravos
não israelitas provinha, porém, ao menos nos primeiros tempos, dos nascidos de
escravos na casa do senhor. Estes eram de maior confiança e não havia perigo
que fugissem para suas antigas terras. Os escravos aceitavam sua situação de
submissão, considerando o poder dos senhores (Vendrame, 1981).
Compreende-se que os escravos netinîm – “escravos sagrados” em hebraico – eram hierarquicamente
superiores na escala social aos outros. Os netinîm
ajudavam nos trabalhos sagrados no templo, os quais eram organizados pelos dois
grupos que estavam no topo da pirâmide social dos hebreus: os cohenim e os levitas. Os primeiros eram
os sacerdotes e os últimos os que ajudavam nos serviços religiosos. Esses dois
grupos sociais eram considerados puros, não podendo, por exemplo, entrar em
cemitérios, além de serem altamente respeitados como os guardiães da religião
judaica. Sendo assim, os escravos escolhidos para trabalhar no templo, os netinîm, foram paulatinamente adquirindo
o reconhecimento da comunidade judaica a ponto de se tornarem membros desta,
como já explanado (Vendrame, 1981).
A venda de menores
era bastante comum no Oriente Médio antigo e processava-se de duas formas: pela
venda pura e simples, como se usava na Assíria e na Babilônia, e pela adoção,
que não passava de venda camuflada, como atestam os documentos de Nuzi, antiga
cidade mesopotâmia. Era freqüente a venda de moças menores para servirem de
empregadas à patroa e de concubinas ao patrão. “Nos contratos de
‘venda-adoção’, nota-se a preocupação dos pais de incluir a cláusula do
casamento da filha, a fim de que o patrão não a explorasse na prostituição, que
era sorte comum das escravas” (Vendrame, 1981, p. 130). A adoção tinha
motivação mais econômica do que afetiva. O que mais interessava aos pais
adotivos era ter serviço barato e assistência na velhice. Assim, na Neobabilônia e na tardia Assíria, a
adoção praticamente desapareceu por causa do aumento do número de escravos.
Documentos do antigo Oriente Médio revelam a prática da
“autovenda” para saldar suas dívidas. Era freqüente entre os imigrantes
estrangeiros que não tinham parentes e amigos. Na antiga Babilônia, muitos se
vendiam em troca de comida e roupas. A pessoa assim vendida, ainda mantinha personalidade
jurídica, mesmo que ficasse economicamente dependente do patrão. No caso de
tentativa de fuga, porém, passava à escravidão pura e simples (Vendrame,
1981).
O Levítico autoriza a autovenda de israelitas, explicitando
que a pessoa que se vende torna-se propriedade do comprador, isto é, um escravo
(Levítico, 25:39). Segundo as normas ditadas pelos versículos seguintes, ele,
embora escravo, não deve ser tratado como escravo. Ainda que os israelitas
fossem obrigados a libertar seus irmãos israelitas escravizados no sétimo ano,
muitos preferiam continuar como escravos devido às condições socioeconômicas da
época: “(...) podia em certos casos ser menos onerosa a escravidão com mesa
assegurada do que a liberdade com pão incerto” (Vendrame, 1981, p. 133). O
Deuteronômio (15:16) veta a autovenda por outros motivos que não seja o da
extrema necessidade. Ademais, o Levítico
(25:47) prevê a eventualidade de um israelita vender-se a um estrangeiro
residente no país, mas seus familiares devem resgatá-lo o mais rápido
possível.
Embora a Torah
tolere a escravidão dos judeus em certas circunstâncias, estes não deveriam ser
escravizados por serem servos de Javé, um dos nomes de Deus, o qual os libertou
da escravidão do Egito. Eles não podem dispor de si para se tornarem servos de
outro senhor (Levítico, 25:38). Vendrame
(1981) lembra que a autovenda era comum no Oriente Médio, mas a legislação
bíblica era a única que se tem notícia a regulamentar o caso.
Na antiga Babilônia, os casos de insolvência de dívidas eram
comuns por causa das desgraças, das pestes, da guerra, mas, também, pelos altos
juros que os credores cobravam. Nos contratos, fazia-se penhora de casas,
campos, escravos, filhos e mulher. Só no fim, o credor se apoderava do
proprietário. Muitas vezes, o credor maltratava o escravo para comover a
família a pagar a dívida (Vendrame, 1981). O Êxodo e o Deuteronômio explicitam,
no entanto, que os judeus não podem cobrar juros de seus irmãos, somente de
estrangeiros.
A escravidão que se origina do crime de roubo foi talvez a
que mais durou entre os judeus. “O que não é de admirar, se levarmos em conta
que também nações que fazem alarde da própria democracia e proclamam a
liberdade pessoal como um direito inalienável da pessoa, defendem como legítimo
o trabalho forçado dos presos de guerra ou por crime” (Vendrame, 1981, p.
138).
Entre as diversas fontes de escravidão, a mais barata e a
que podia aumentar consideravelmente o número de escravos era a reprodução na
casa do senhor. Êxodo (21:4) estipula que se o patrão dá mulher ao seu escravo
e ela lhe dá filhos ou filhas, a mulher e a prole ficam como propriedade do
patrão. No ano sabático, ou seja, no sétimo ano, o escravo sai sozinho. Se a
escrava que casou com o escravo fosse israelita, ela também era libertada, mas
não se fosse estrangeira.
1.
Status
Social dos Escravos na Antiguidade
Bíblica
Hoje, os fazendeiros costumam marcar o gado com ferro em
brasa para identificá-lo e indicar posse. Os egípcios já carimbavam seus
escravos a fogo (Davis, 2003). A condição social na Babilônia dependia
essencialmente da posição econômica, visto que a pessoa livre poderia tornar-se
escrava e viceversa. “Daí os documentos falarem da marca que os escravos
recebiam e também da purificação no momento da libertação” (Vendrame, 1981, p.
145).
O Código de Hamurabi[1]
refere-se à marca em escravos em alguns artigos. Determinava que a hierodula,
cortesã sagrada, não podia vender a sua escrava quando esta tivesse filhos de
seu marido. Se a escrava se tornasse orgulhosa, a senhora poderia marcá-la com
um estigma e assim rebaixá-la à categoria dos escravos comuns (Vendrame, 1981).
O Código valorizava tanto a marca que prescrevia o corte da mão do marcador de
escravos que ousasse cancelar a de um escravo alheio sem autorização do dono. O
senhor que enganasse um marcador fazendo-o cancelar a marca de um escravo
alheio era punido.
No Oriente Médio, as
marcas variavam de região a região. Não se tem certeza se todos os escravos
deveriam ter uma marca. Alguns eram marcados com ferro e brasa ou em forma de
tatuagem, na fronte ou no braço, o nome do proprietário. Outros carregavam
pedaço de metal com o nome do proprietário em alguma parte do corpo. Alguns
tinham a cabeça raspada como forma de punição. Algumas vezes eram marcados com
sinal simbólico (Patterson, 1982).
O escravo hebreu que escolhesse ficar na casa do patrão
para sempre recebia um furinho quase invisível na orelha, o que representava um
rito simbólico de pertencimento ao senhor (Patterson, 1982). Vendrame (1981)
ressalta que, mesmo em Israel, passagens bíblicas atestam o uso de marcas como
sinal de pertença.
Assim, na antiguidade bíblica, os escravos já eram marcados
com o sinal de propriedade de algum senhor. A marca no escravo significava a
posição hierarquicamente inferior do indivíduo escravizado na sociedade. Vale
lembrar que tal hierarquia era evidente mesmo entre os escravos como se pode
perceber, elucidando que a antiga prática da escravidão era fruto da
inferioridade na escala social de alguns. Indivíduos desprovidos de recursos e
famintos viam na escravidão o único meio de sobrevivência. Deve-se esclarecer
que pela hierarquia entre os escravos, alguns tinham mais autonomia do que
outros, como ilustram as concubinas dos senhores.
Como se perceberá no próximo tópico, a relação do escravo
com a família e com a comunidade na antiguidade bíblica é muito diversa da do
escravo dos tempos clássicos - da escravatura dos mundos grego e romano. Em
Israel, o escravo vivia no seio da família, participava da vida do grupo,
conquanto em posição social inferior. Segundo o Gênesis (17:12-13), era obrigatória a circuncisão, sinal do pacto
de Abraão com Deus, de todo escravo, mesmo o estrangeiro. Para a mulher, era o
batismo que significava a entrada na comunidade e marcava sua conversão ao
judaísmo. Os escravos perdiam a condição
de gentios, mas não adquiriam o status de judeus plenos.
Inserido na família de seu senhor, o escravo podia até
tomar parte na herança, à preferência do filho degenerado (Provérbios 17:2) e,
na falta de descendentes, tornar-se o herdeiro.
De modo que o escravo, embora seja
considerado também na Bíblia como mercadoria que se enumera entre os haveres da
família, como se diz de Abraão que ‘teve gado pequeno e grande, jumentos,
escravos, escravas, jumentas e camelos’, ele é mais que simples objeto; é
pessoa que participa da vida social e religiosa do grupo humano que ele
integra, embora sempre com as limitações de sua condição social inferior (Vendrame,
1981, p. 158).
Na antiga Babilônia, os casamentos de escravos com mulheres
livres eram bastante comuns, desde que fossem celebrados com a prévia
autorização do patrão. O Código de Hamurabi prescrevia que se um escravo
casasse com a filha de um senhor, a qual lhe deu filhos, o dono do escravo não
podia requisitar para seu serviço os filhos da filha do senhor. O Código não
contempla o caso do matrimônio de escrava com homem livre. Considera, todavia,
lícito um senhor juntar-se com sua escrava ou com a escrava de sua esposa. Os
filhos do senhor com a escrava tinham direito à herança, caso o senhor os
considerasse filhos (Vendrame, 1981).
Êxodo (2:34-35)
registra que o Código da Aliança determina que o escravo que entrou na casa do
seu patrão com a esposa, ao ficar livre sai com a esposa e os filhos; se,
porém, a esposa lhe foi dada pelo patrão, ao ficar livre, sai sozinho,
permanecendo a esposa e os filhos propriedade do patrão.
Levítico (25:49)
afirma que o próprio escravo poderá resgatar a si mesmo, se conseguir os meios,
o que evidentemente supõe a capacidade de adquirir estes meios. Documentos dos
tempos mais remotos atestam na Babilônia, na Assíria e no Egito, o “privilégio”
de os escravos acumularem pecúlios, conseguindo, por vezes, pagar o preço do
próprio resgate.
Embora não esteja bem elucidada ainda
a maneira como iniciava a base do pecúlio do escravo, se por ofertas de seus
parentes, por presentes obtidos do patrão como prêmio da sua dedicação, se pela
sua capacidade inventiva ou comercial, o fato é que muitos escravos conseguiam
aumentar seu capitalzinho e transformar-se em hábeis administradores a cuja
sagacidade os próprios homens livres confiavam seus negócios (Vendrame,
1981, p. 161).
No período neobabilônico (Dandamaev; Powell, 1984), os
escravos desempenhavam papel substancial na vida econômica da nação. Realizavam
transações de toda ordem, faziam empréstimos, compravam, vendiam e arrendavam
terrenos, reuniam-se em companhias imobiliárias e comerciais, mesmo em
sociedade com homens livres. Até mulheres escravas participavam dos negócios.
Escravos podiam tornar-se donos de escravos que, por sua vez, tornavam-se donos
de outros escravos, numa evidente hierarquia entre os indivíduos escravizados.
O pecúlio, em si, dentro da conceituação do escravo, não
passava de mero privilégio, concedido pelo patrão e que podia ser legalmente
retirado pelo mesmo. A considerável utilização do pecúlio, todavia devia dar
aos indivíduos livres a sensação de liberdade e a percepção de serem iguais aos
outros homens livres. A habilidade de muitos escravos nos negócios demonstrava
que as pessoas livres não subjugavam a capacidade intelectual dos escravos,
aproveitando a habilidade deles para ganhar dinheiro (Dandamaev; Powell,
1984).
De acordo com Levítico (25:46), diferentemente do escravo
judeu, o escravo gentio era transmitido de pai para filho juntamente com a
herança. Assim, o escravo judeu era hierarquicamente superior ao escravo
gentio, uma vez que o primeiro tinha a escravidão finda no sétimo ano, como já
dito, o que demonstrava a maior consideração pelo povo hebreu.
O caráter perpétuo da escravidão do gentio não era
associado à natureza humana. Quando o senhor atentava com grosseria contra a
dignidade da sua pessoa humana, o escravo deveria ser libertado (Êxodo,
21:26-27). Ademais, no judaísmo era prevista a libertação do escravo gentio em
algumas circunstâncias: por vontade do dono; pela compra da liberdade por parte
do escravo; pela morte do dono, se este não tivesse filhos.
Com o panorama geral sobre a escravidão na antiguidade
bíblica, pode-se avançar na discussão, analisando, em seguida, a escravidão na
antiguidade clássica.
2.
Escravidão
e Hierarquia na Antiguidade Clássica: Grécia e Roma
Costuma-se dizer que Platão era um opositor da escravidão.
Nada consta, no entanto, que Platão quisesse excluí-la de sua República ideal,
visto que o filósofo aceitava a servidão dos estrangeiros, dos bárbaros. Na
Grécia antiga, mesmo o escravo alforriado era obrigado a servir a seu primeiro
senhor, não havendo salvaguardas para evitar que seu ser fosse reduzido
novamente à escravidão. O homem liberto não tinha esperança alguma de vir a ser
cidadão, pois exigia-se que ele deixasse o Estado após um prazo limitado de
residência. Não havia proteção contra tratamentos severos. “Platão inclusive
lhes negaria uma relação estreita amigável com a classe dos senhores, e daria a
quaisquer pessoas livres o direito de julgar e punir um escravo por
determinados crimes, ou de se vingar sumariamente contra insulto” (Davis, 2003,
p. 85).
Platão e outros filósofos gregos acreditavam
contundentemente na distinção entre helenos e bárbaros. A servidão estava
ligada ao governo tirânico e ao poder arbitrário, um povo com capacidade e
desejo por liberdade, com instituições políticas democráticas, não poderia ser
legitimamente escravo. Um “povo escravo” não teria o discernimento para
governar, além de não possuir a virtude e a cultura necessárias para reger suas
vida. Assim, para Platão, um escravo seria deficiente na matéria da razão
(Davis, 2003; Patterson, 1982). Por certo, o filósofo começou a dar os
elementos para uma teoria de inferioridade intelectual como base natural para a
escravidão. Os discípulos de Platão, particularmente Plotino, acreditavam que o
mal, a escravidão, tinha razão para existir, e não podia ser eliminado sem se
destruir a beleza e o equilíbrio do todo (Davis, 2003).
Aristóteles afirmou que sem trabalho não podia haver polis e, portanto, nenhuma base para a
virtude e a sabedoria. Vivendo em sociedade que dissociava a cultura e o
serviço público da menor contaminação do trabalho braçal, Aristóteles via a
escravidão como um meio necessário de suprir as necessidades da vida. Para o
filósofo, a verdadeira escravidão derivava de uma deficiência na virtude
interna da alma. Assim, uns nasceriam para a sujeição e outros para governar. O
escravo natural não tinha liberdade moral e intelectual para tomar decisões e
julgamentos. Aristóteles não concordou com Platão quando este estabeleceu que
os senhores deveriam apenas comandar seus escravos e nunca conversar com eles
de maneira amigável; a relação era claramente benéfica para ambos, segundo
Aristóteles (Davis, 2003; Patterson, 1982; Vernant; VidalNaquet, 1989 ).
Todavia, uma verdadeira amizade era
impossível, pois o escravo era incapaz de retribuir uma genuína boa vontade ou
benevolência. Seus verdadeiros interesses só poderiam ser os de seu senhor. Na
verdade, dificilmente um escravo poderia falar de seus interesses, uma vez que
como instrumento ou posse ele era somente uma extensão da natureza física do
seu senhor. O melhor escravo, parece, era aquele cuja natureza humana tinha
sido, em sua maior parte, quase apagada (Davis, 2003, p. 90).
Havia o desafio intelectual da análise sobre o homem
escravizado em conseqüência de guerra. Aristóteles assumia que esse escravo não
podia ter o mesmo interesse que seus senhores. Dessa forma, a autoridade de
seus senhores não era mais legítima do que a de tiranos políticos. Além disso,
Aristóteles afiançou que uns foram feitos para trabalhos braçais, outros para a
política e as artes, mas admitia que as diferenças físicas não eram indicação
clara do status natural. Essa
admissão abria lacuna significativa entre escravo real e teórico – lacuna que
seria ampliada pelos estóicos e pelos cristãos e que não se fechou inteiramente
até que gerações posteriores inventassem a teoria da inferioridade racial
(Vernant; Vidal-Naquet, 1989).
Aristóteles fazia objeção aos cidadãos que praticavam os
ofícios de seus inferiores, uma vez que isso finalmente tenderia a eliminar as
diferenças entre escravos e homens livres. Segundo o filósofo, era perigoso que
crianças ficassem muito na companhia de escravos. Havia, contudo, ambigüidade
no pensamento do filósofo, já que ao mesmo tempo em que queria separar escravos
e senhores, defendeu a liberdade como recompensa pelos serviços do escravo.
Daí, muitos historiadores que sustentaram os interesses econômicos por trás da
escravidão acusarem os estóicos de formular contradições anuladas, com
abstrações sem sentido (Davis, 2003).
Enquanto Aristóteles sustentava que um escravo era
realmente parte do ser físico de seu senhor, Zenão e Crisipo viam sua alma como
parte da substância total de uma razão universal. Diferenciações externas entre
gregos e bárbaros, macho e fêmea, ou escravo e homem livre eram meros acidentes
que não tinham relevância para a natureza. Segundo esses estóicos, todavia, a
maioria dos homens era escrava do desejo e do preconceito (Davis, 2003).
Os estóicos, bem como os hebreus, acreditavam que a
verdadeira liberdade era privilégio de uma elite. Não poderia haver emancipação
gradual da escravidão moral, já que o mundo ético dos estóicos era pautado pela
antítese: os homens livres tinham a liberdade e a moral para governar, enquanto
os escravos eram desprovidos de razão suficiente para conduzir o próprio
destino (Davis, 2003; Patterson, 1982).
Para o estóico Epicteto, que foi escravo por parte da vida,
a verdadeira liberdade significava autotranscendência, desligamento do ego que
estava em seu redor. Assim, o ambiente do escravo não era mais perigoso do que
qualquer outro para a alma. Segundo o filósofo, mesmo se um escravo liberto
desfrutasse de sucesso material, ele não teria percepção da virtude e poderia
tornar-se escravo do amor, do desejo ou de uma facção política. O homem liberto
tendia a nostalgicamente relembrar o passado, no qual suas necessidades físicas
eram saciadas pelo senhor (Davis, 2003; Patterson, 1982). Assim como outros
estóicos, Epicteto via a escravidão com base nas imperfeições do mundo e o
pecado a um tipo especial de escravidão. O filósofo sugeriu que o escravo está
em situação melhor do que muitos homens livres, antecipando argumentos de teóricos
próescravidão no século XIX.
Sêneca afirmou que somente o corpo do escravo estava à
mercê de seu senhor, pois a parte interna não pode ser entregue ao seu senhor.
Os senhores deveriam tratar seus escravos do mesmo modo como eram tratados por
seus superiores. O filósofo acreditava que alguns homens, como resultado do
pecado e da corrupção, tinham alma de escravo. Associava os maus-tratos aos
escravos à luxúria, à arrogância. A discussão da escravidão era veículo para
pregar simplicidade e humildade, e para lembrar aos ricos o quanto eles deviam
à fortuna. Quando Sêneca quis dar provas de sua própria simplicidade de vida,
contou ter levado somente poucos escravos em uma de suas viagens (Davis, 2003;
Patterson, 1982).
Mais tarde, Ireneu de Lyon baseou-se no Velho Testamento (Torah) para prefigurar salvação
universal por meio do divino Logos[2].
Concluiu que os judeus foram escravizados pelos seus pecados. A escravidão dos
judeus serviu, portanto, como meio de redenção do povo hebreu. A escravidão foi
meio necessário como preparação para a liberdade. A partir de então, a
escravidão física começou a adquirir novo significado na história da salvação
humana (Davis, 2003).
Os sofistas foram, provavelmente, os primeiros a pregar que
a escravidão era obra da convenção humana, nada tinha de inerente à natureza
humana. Os sofistas Fílon e Díon Crisóstomo procuraram distinguir o significado
verdadeiro de “escravo” e o literal. Eles concordaram que o homem ama a
natureza e a escravidão é imoral. Díon mostrou que o verdadeiro escravo era um
homem ignorante a respeito do que era permitido e proibido pela lei natural. Um
grande rei podia ser escravo, um homem em cativeiro podia ser homem livre. O
escravo era um pecador. Para Fílon e Díon isso não era linguagem figurada, mas
estado da realidade. Segundo Díon, os prisioneiros de guerra não poderiam ser
verdadeiros escravos; mantidos à força, não havia razão para não escaparem ou
retaliarem, capturando seus senhores anteriores. Se isso era verdade, os
senhores não deveriam ter direito aos descendentes de cativos. Ganhar a posse
de alguém não era justo para o filósofo, sendo o termo “escravo” uma distorção
da verdade. Esse argumento parece similar ao dos abolicionistas no século XIX.
Os abolicionistas salientavam que os homens que nasciam livres estavam sendo
submetidos a um ambiente opressivo e deveriam ser libertados da coerção ilegal,
da mentira que era a legitimação da escravidão estruturada pelas teorias da
inferioridade racial (Davis, 2003; Vernant; Vidal-Naquet, 1989).
Os cristãos foram fortemente influenciados pelos estóicos,
pois sustentavam que a verdadeira liberdade só pode vir a partir de uma mudança
interna na natureza do homem – a maior parte dos homens que se consideram
livres é realmente escrava. Logo que os cristãos reiteradamente conceberam o
pecado e a salvação em termos de escravidão e liberdade, as palavras adquiriram
diferentes significados que, necessariamente, afetaram a reação dos homens à
instituição escravocrata. Como disse Jesus aos Fariseus:
Se permanecerdes fiéis à minha
palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos; e devereis conhecer a verdade,
e a verdade deverá vos tornar livres. Eles responderam para ele: Somos
descendentes de Abraão, e nunca fomos servos de homem algum: como dissestes, vós
devereis vos tornar livres? Jesus respondeulhes: em verdade, em verdade eu vos
digo: todo aquele que comete o pecado é escravo [doulos] do pecado (João
8: 31-35).
Enquanto Platão associava a desordem do mundo material à
escravidão e os estóicos consideravam a sociedade convencional
irrecuperavelmente arruinada. Paulo, apóstolo de Cristo, falava de toda a
humanidade livrar-se da escravidão da corrupção na liberdade dos filhos de
Deus. Ele dizia-se escravo de Jesus e como nenhum escravo podia ter mais de um
senhor, pregava que os homens deveriam escolher entre Deus e a riqueza
material. Os cristãos consideram-se descendentes de Abraão como os judeus,
herdeiros de Isaac, “filho da promessa”, nascido de uma mão livre, Sara -
representando a liberdade espiritual. Já o irmão de Isaac, Ismael, é
considerado pelos cristãos e pelos judeus a representação da servidão em
relação ao corpo, visto que nasceu de uma escrava egípcia (Davis, 2003).
Como Aristóteles, os cristãos lembram que o escravo é
passivo de emancipação, mesmo aquele que era desprovido de virtude. “Pois
aquele que era escravo quando chamado ao Senhor, é do Senhor o homem livre: da
mesma forma que aquele que era livre quando foi chamado, é escravo de Cristo”
(Primeira Epístola aos Coríntios, 7:20-22).
Os primeiros cristãos podiam escravizar, inclusive, outros
cristãos, embora devessem tratar estes de forma digna. Santo Ambrósio, Santo
Isidoro de Sevilha e Santo Agostinho consideravam a escravidão, ao lado de
todos os seculares instrumentos de coerção e de governo, como parte da punição
pela queda do homem do estado de graça. De acordo com Agostinho, a escravidão
era remédio para o pecado, e Deus escolhia quem deveria ser senhor e quem
deveria ser escravo. Assim, como Platão insinuara, a escravidão era parte do
grande esquema da ordem e do governo divino, força disciplinadora que
restringia o fluxo subterrâneo do mal e da rebelião. Dessa forma, todos os
escravos mereciam ser escravos por ordem divina. Em 362 d.C., o Concílio de
Gangrae estabeleceu o anátema para
qualquer um que ensinasse um escravo a desprezar seu senhor ou a abandonar seu
serviço. Mostra-se, assim, que a Igreja, sob influência do pensamento
helenístico e romano, sustentou a escravidão como instituição. Devese salientar
que a própria Bíblia legitima a escravidão, o que será utilizado por autores no
século XIX para a defesa da superioridade de uns sobre outros (Davis,
2003).
3.
A Evolução
das Idéias sobre a Escravidão: a Idade Média e o Iluminismo
São Tomás de Aquino concordava com Aristóteles de que os
princípios da regra despótica e constitucional eram exemplificados nas
faculdades humanas: assim, o intelecto governava os apetites por meio de um
poder político, mas a relação da alma com o corpo era como a de um senhor com o
escravo (Vernant; Vidal-Naquet, 1989).
Aquino afirmou que São Gregório, já no século VI, havia dito que a
escravidão era contrária à natureza. Negar esse julgamento, como Aristóteles
fizera, tenderia a invalidar o conceito estóico de liberdade original do homem
de acordo com o direito natural. Se a escravidão fosse um bem positivo e uma
parte necessária da criação, o mesmo poderia ser dito do próprio pecado (Davis,
2003). Para São Tomás de Aquino, mesmo os anjos estavam sujeitos a padrão
hierárquicos, sendo os arcanjos pertencentes à ordem superior.
Fazendo alusão à escravidão, Tomás explicitou que a
diferença entre esta e a subordinação natural era mais de grau do que de
espécie. São Tomás ainda pensava na escravidão como causada pelo pecado, mas
ele fazia que isso parecesse mais natural e tolerável, identificando-a com a
estrutura racional do ser, o que requeria que cada indivíduo aceitasse a
necessidade de subordinação a uma ordem superior (Davis, 2003). Era questão de
hierarquia, a qual pautava as relações sociais. Essa crença fez o santo
católico aproximar-se de visão de inferioridade natural dos escravos.
Maimônedes, um dos maiores sábios judeus de todos os
tempos, em contraste marcante com as idéias de São Tomás de Aquino, asseriu que
os homens que possuíssem muitos escravos aumentavam seus pecados a cada dia. Em
vez de comprar escravos, os homens deveriam dar emprego aos pobres. Como os
judeus eram considerados hereges pelos católicos, estes lutaram durante os
séculos XIV e XV para acabar com a escravidão de cristãos por parte de
não-cristãos. Em 1425, uma bula papal ameaçou os vendedores de escravos
cristãos com a excomunhão e mandou os judeus usarem uma insígnia de infâmia na
roupa, em parte para evitar que comprassem cristãos (Davis, 2003; Patterson,
1982).
No entanto, no século XV (...) A
Igreja denunciava e ameaçava punir os fiéis que raptassem e escravizassem
forçosamente os companheiros cristãos. Todavia, esses escrúpulos não se
estendiam aos incrédulos, que costumavam ser considerados indignos de
liberdade. Quando os europeus capturavam ou compravam pagãos, eles se viam
atacando a infidelidade em geral, assim como conseguindo novas almas para a
Igreja ganhar. Essas foram as idéias que guiaram a Igreja quando os europeus
entraram em contato com a África Negra. Em 1452, o papa Nicolau V autorizou o
rei de Portugal a privar os mouros e os pagãos de sua liberdade. Em 1488, o
papa Inocêncio VIII aceitou um presente de Fernando da Espanha de uns cem
mouros e distribuiu-os entre os cardeais e a nobreza (Davis,
2003, p. 122)..
Interessante notar que já em 1366, os governantes de
Florença já haviam explicado que com “infiel” queriam dizer todos os escravos
de origem infiel, mesmo se no momento de sua chegada eles pertencessem à fé
católica; e “origem infiel” significava simplesmente a terra e a raça dos
infiéis. Com essa mudança sutil na definição, os governantes de Florença
evitaram o dilema do batismo, substituindo a base da escravidão, fundada na
diferença religiosa, pela origem étnica (Davis, 2003; Patterson, 1982).
A Reforma protestante, no século XVI, não trouxe mudança
imediata nas idéias tradicionais sobre a escravidão. Quando os servos da Suábia[3] clamaram pela
emancipação, em 1525, alegando que Cristo morrera para libertar os homens,
Martinho Lutero ficou tão apreensivo como qualquer outro católico ortodoxo.
Lutero provavelmente pensava como São Paulo: os senhores e os escravos deveriam
aceitar sua posição social presente, pois o reino da terra não poderia sobreviver,
exceto se alguns homens fossem livres e outros escravos (Davis, 2003).
Não era fácil combater uma instituição que já estava
enraizada na Igreja e nas idéias da maior parte dos escritores da antiguidade.
As pessoas, que demonstravam cada vez mais respeito por Platão, Aristóteles e
pela Lei romana (que autorizava a escravidão), não condenariam a escravidão
como um mal intrínseco. Por isso, o resgate dos autores clássicos pelo
Renascimento acabou por reforçar as justificativas tradicionais da servidão humana
(Davis, 2003).
Em A Utopia de Thomas Morus, o autor criticou
veementemente muitas injustiças, como o enclosure
e o código penal bárbaro. Morus percebeu que o homem jamais alcançaria um
estágio de perfeição na terra, mas poderia produzir o máximo possível de
felicidade. O autor admitia, no entanto, que o um trabalhador pobre em outro
país se tornasse um escravo na República Utopia. Pessoas condenadas por crimes
malvados seriam mais bem aproveitadas se fossem escravizadas, e não condenadas
à morte. As tropas capturadas em guerra deveriam também ser escravizadas.
Percebe-se que Morus defendia a escravidão, embora não pregasse a escravidão
hereditária (More, 19--).
Nenhum protesto contra a teoria tradicional emergiu das
grandes autoridades da lei do século XVII, ou de filósofos e homens das letras
como Descartes, Malebranche, Spinoza, Pascal ou Bayle. Jacques Bossuet alegou
que ninguém poderia rejeitar a escravidão sem rejeitar tanto a guerra quanto a
lei das nações. Bossuet citou que toda a autoridade, independentemente da
origem, tornava-se legítima com o tempo e a aceitação geral (Davis, 2003).
Jean Bodin estudava o código civil na Universidade de
Toulouse quando um mercador genovês visitou a província com um escravo. Quando
o anfitrião do mercador convenceu o escravo a demandar sua liberdade, os
magistrados descobriram registros estipulando que qualquer escravo que entrasse
em Toulouse tornava-se automaticamente livre. Bodin impressionou-se com o
incidente, percebendo que o precedente legal estava vagamente associado a uma
lei maior que dirigia e limitava inclusive o soberano, livre tanto quanto podia
de toda autoridade humana. Bodin argumentava que a escravidão trouxera sempre
crueldade e corrupção. Era uma catástrofe a escravidão ter sido introduzida no
mundo e reintroduzida na América (Davis, 2003).
Bodin foi retratado pela história como defensor do poder
absoluto, enquanto Hugo Grotius (Grócio, 2004) foi classificado como humanista
liberal. Foi Grotius que livrou o direito natural da rede restritiva da
teologia e ergueu-o como autoridade suprema não só acima da vontade de todo
soberano terrestre como acima da vontade de Deus. Grotius, contudo, considerava
a escravidão tão harmoniosa quanto a justiça natural. Grotius tentou construir
defesa da escravidão racional e secular (Grócio, 2004; Davis, 2003). Grotius
argumentava que os senhores que forneciam sustento aos filhos de escravos
tinham direito a seu serviço perpétuo; não há nada de chocante, segundo o
autor, em uma troca de servidão como essa por uma certeza de alimentação
eterna. Os pais tinham direito natural de vender os filhos que não poderiam ser
sustentados de outra maneira (Grócio, 2004).
Para Grotius, havia certos limites relacionados ao dever de
obediência do escravo. Um escravo sujeito a brutalidades poderia buscar refúgio
na luta. Da mesma forma, o escravo ou o descendente que tivesse sido
injustamente capturado não seria moralmente culpado de furto se fugisse, desde
que não devesse nada a seu senhor (Grócio, 2004). Apesar das reservas quanto à
escravidão, Grotius associava a escravidão a toda a estrutura de disciplina
social e de autoridade. Sem se referir ao pecado original, ele citava Santo
Agostinho sobre a necessidade de as pessoas perdoarem seus superiores, e de os
escravos submeterem-se a seus senhores. Resistir ao senhor seria confrontar os
direitos externos, ou seja, os tribunais judiciários. Grotius negava o conceito
de pecado original da escravidão, mas considerava a instituição expressão da
ordem racional do mundo (Grócio, 2004).
Thomas Hobbes dissertou que a escravidão não se inseria em
ordem racional, mas na lógica do poder. Esta não se definia nas questões de
pecado ou inferioridade natural. O filósofo abandonou a distinção estóica e
cristã entre servidão externa do corpo e liberdade interna da alma. A vontade
do escravo era tão completamente subordinada à de seu senhor que seria
impossível o senhor violar os direitos do escravo (Hobbes, 1982). Hobbes
reconheceu que um prisioneiro que fosse feito escravo poderia fugir ou tentar
matar seu senhor.
Quando não havia dominação puramente sob o poder físico,
Hobbes declarava que a dominação do senhor era sancionada por contrato, como um
contrato social. A única diferença entre sujeito livre e o servo era que um
servia à cidade e o outro servia ao semelhante. Por isso, o escravo não tinha
por que reclamar, visto que o senhor lhe provia de subsistência em troca de ser
governado. O contrato, contudo, não previa direitos e obrigações recíprocos. O
escravo não tinha direitos e era obrigado a obedecer a seu senhor (Hobbes,
1982; Hobbes, 1983). De fato, paradoxalmente, Hobbes pode ser visto como uma
das fontes do pensamento antiescravocrata.
À medida que Hobbes ligava a defesa da
escravidão à defesa de um Estado absolutista, partindo da distinção helênica
entre servidão doméstica e governo constitucional, abriu-se caminho para
futuros pensadores passarem de ataque ao absolutismo para luta contra a
escravidão. Na França, é possível dizer
o mesmo de Bossuet (Davis, 2003, 139).
John Locke condenava a escravidão de ingleses, mas não a de
outros povos, assim como Platão condenava a escravidão de gregos, mas não de
bárbaros. Na verdade, Locke chegou a ser investidor na Companhia Real Africana
e considerou a escravidão do negro uma instituição justificável. Essas idéias
parecem colidir com o liberalismo do autor e a defesa de direitos inalienáveis,
como o direito à vida. Havia clara ambigüidade, como de costume quando se trata
do tema escravidão, no pensamento de Locke. Este escreveu as Constituições
Fundamentais da Carolina, uma das 13 colônias britânicas, em 1669, ressaltando
no texto que o homem livre tem autoridade absoluta sobre os escravos. Como se
pode perceber, Locke e os colonizadores americanos combinavam estranha
combinação de amor à liberdade e aceitação da escravidão (Davis, 2003).
Para Locke, a origem da escravidão e da liberdade estava
fora do contrato social. Os homens seriam inteiramente livres ou escravos. O
escravo seria propriedade do senhor, propriedade privada, e a defesa dessa
propriedade era papel do Estado. Apesar disso, a teoria da liberdade natural de
Locke impregnou o pensamento abolicionista (Davis, 2003). A aceitação da
escravidão pelo autor mostra, no entanto, o quão distante o abolicionismo
estava dos séculos XVII e XVIII. Na
verdade, a idéia de direito de propriedade de Locke foi herança grega e romana.
Segundo Fustel de Coulanges (2000), a idéia de propriedade privada estava na
própria religião. Cada família tinha o seu lar e os seus deuses. Estes eram
sagrados e de propriedade exclusiva da família.
Percebe-se que a escravidão não deve ser considerada
instituição peculiar na História. A escravidão foi característica das grandes
civilizações, marco que foi a base da estrutura socioeconômica de antigas
sociedades. Na Antiguidade, Grécia e Roma eram genuínas sociedades
escravocratas, bem como a Espanha visigótica, a antiga sociedade inglesa, a
França merovíngia, a Europa viking do
extremo norte. A instituição escravocrata ganhou força nos tempos medievais,
passando pela Renascença até alcançar o século XIX (Patterson, 1982).
A Renascença e a ilustração, longe de porem fim à
escravidão, tiveram em Veneza e em Gênova a prova de que sociedades européias
eram extremamente dependentes da escravidão. A Europa não foi a única, todavia.
A ascensão do Islã só foi possível graças à escravidão, uma vez que a elite e
os intelectuais árabes exploraram mão-de-obra escrava qualificada e
não-qualificada com vistas a levar a religião para além Oriente Médio.
Na África, igualmente a instituição estava associada à
região, como ilustra Gana medieval, Mali, Reino de Daomé (atual Benin -
primeiro Estado a reconhecer a Independência do Brasil), a cidade-Estado dos
Iorubás, entre outros (Patterson, 1982; Magnoli, 2004).
4.
Os
Elementos Constitutivos da Escravidão
A escravidão é uma das formas extremas de relação de
dominação. Esta relação está relacionada à concepção de poder, a qual tem três
facetas de acordo com Orlando Patterson (1981). A primeira faceta é social e
envolve o uso ou ameaça de violência no controle de uma pessoa. A segunda
mostra-se como a faceta da influência psicológica, a capacidade de persuasão
para mudar o jeito com que uma pessoa percebe determinada circunstância. A
última é a faceta cultural da autoridade, o meio de transformar força em direito
e obediência em dever – segundo Jean Jacques Rousseau, o mais poderoso acredita
ser necessário assegurar o controle perene sobre o outro (Patterson,
1982).
Patterson (1982) afirma que a autoridade do senhor sobre o
escravo está no controle privado e público de símbolos e processos rituais que
induzem as pessoas a obedecer, porque estas se sentem satisfeitas ao cumprir o
mando dos senhores.
O escravo não tinha poder em relação a
outro indivíduo, além de não existir socialmente sem seu mestre – o escravo só
se socializava por meio de seu senhor. Assim, o escravo era uma pessoa
socialmente morta, alguém desprovido de individualidade (Patterson, 1982). O
escravo morria e nascia novamente em um outro sistema social.
O escravo era socialmente isolado de relações sociais e
culturalmente isolado da herança social de seus ancestrais (Patterson, 1982).
No Brasil, os escravos quando aqui chegavam eram separados como forma de apagar
a ligação cultural e social que indivíduos de uma mesma tribo ou nação possuíam.
Os escravos diferiam de outros seres humanos por não poderem integrar a suas
vidas experiências herdadas de seus ancestrais ou exercer na sua realidade
social aspectos culturais de seus ancestrais (Costa, 1999).
Patterson (1982) afirma que nas sociedades escravocratas,
os casais escravos eram separados e as mulheres obrigadas a se submeter
sexualmente a seus senhores. Davis (2003) elucida, entretanto, que, na baixa
Idade Média, os casamentos de escravos foram estimulados pela Igreja Católica
como meio de fazê-los respeitar os ensinamentos da Bíblia que versam sobre a
importância da família e do casamento. Ademais, muitos escravos eram batizados,
o que os fazia cristãos, mesmo que não tivessem autonomia sobre suas vidas. No
Brasil, como os escravos eram vindos de regiões “pagãs”, adeptos de religiões
animistas ou mesmo do islamismo, os senhores não tiveram dificuldades em
separar famílias de escravos, principalmente mães e filhos.
Ser cristão era considerado ser civilizado em contraposição
aos bárbaros, assim como na distinção entre povos helenos e bárbaros, cidadãos
e não-cidadãos. Além disso, a diferença de religião logo ganhou cunho racial,
visto que os negros africanos eram vistos pelos europeus como seres inferiores,
menos desenvolvidos. Deve-se salientar que não apenas os negros eram
estigmatizados, mas, também, os orientais e os islâmicos – além dos judeus.
Como na Roma antiga, os bárbaros eram para os europeus os estrangeiros, aqueles
cultural e socialmente diferentes (Patterson, 1982).
Ao ter seu passado apagado pelo senhor – pela condição
servil -, ter morrido socialmente, além da coerção física, os senhores
costumavam usar símbolos culturais de dominação. Os “chicotes” não eram
suficientes para sustentar a dominação, “chicotes culturais” eram necessários
para influenciar psicologicamente o escravo. Simbolismos, como nomear e marcar
os escravos, mostravam o negro como objeto que pertencia ao senhor, o qual
tinha todos os direitos sobre os subjugados (Patterson, 1982, Davis, 2003). O
ritual de escravidão possuía quatro características básicas já no mundo
pré-moderno: primeira, a rejeição simbólica pelo escravo do seu passado e de
seus parentes; segunda, mudança de nome; terceira, a imposição de uma marca
visível de escravidão; e, por último, a tomada de um novo status na organização
econômica do senhor. Ademais, a cor e a etnia também podiam ser usadas como
meio de diferenciar os escravos – e não apenas nas Américas. A “cor negra” em
todas as sociedades islâmicas, por exemplo, incluindo partes do Sudão, era e
ainda é associada à escravidão (Patterson, 1982).
Embora a cor tenha tido impacto na escravidão, sempre foi
base fraca como meio de estabelecer diferenças em sociedades inter-raciais. As
variações de cores entre brancos e negros é enorme, principalmente em áreas de
grande miscigenação. Nas Américas, muitas vezes, um escravo era mais claro do
que o seu senhor. Conquanto o estigma da cor não fosse eliminado, com o passar
das gerações o papel simbólico da cor como insígnia distintiva da escravidão
mudava significativamente. (Patterson, 1982). Vale lembrar que a cor branca em
algumas sociedades também era alvo de preconceito. Os egípcios tendiam a ter
cor escura, enquanto muitos dos seus escravos eram significativamente mais
claros.
Para Thomas Hobbes (1983), honra e poder estavam
intrinsecamente ligados. Como os senhores tinham poder, os escravos eram
obrigados a obedecêlos, ou seja, a honrá-los. Já os escravos não podiam ter
honra, pois a origem de seu status não permitia – o escravo não podia existir
socialmente de forma independente. “To Value a man at a high rate, is to Honour
him; at a low rate, is to Dishonour him. But high and low in this case, is to
be understood by comparison to the rate that each man setteh on himself”
(Hobbes apud Patterson, 1982, p. 10).
Por certo, nenhum meio de dominação sobrevive apenas pela
violência. Outros meios são necessários para manter o subjugado dominado. O
Brasil, como se verá mais adiante, exemplifica que a interação escravo-senhor
se dava por relação paternalista. Como já visto, a inserção do escravo na
sociedade passava pelo senhor, pois o escravo estava socialmente morto, não
tinha autonomia para exercer funções subjetivas de indivíduo essenciais na
interação cultural e social entre as pessoas. Assim, a interação senhor-escravo
fundava-se em extrema intimidade, seja por meio de relações sexuais, seja pela
relação cotidiana com os escravos que cuidavam da Casa-Grande (Freyre, 2002).
Os escravos não eram, portanto, apenas uma propriedade como
acreditavam autores do peso de Locke. A relação de propriedade entre as pessoas
pode ocorrer mesmo para aqueles que não são escravos. Sem dúvida, um escravo
era propriedade do senhor, mas igualmente um cidadão de Estado absolutista era
propriedade do rei. Assim, a idéia de propriedade pauta-se pela idéia de poder,
na concepção weberiana: “opportunity existing withing a social relationship which permits one to
carry out one’s will even against resistance and regardless of the basis on
which this oppotunity rests” (Weber apud Patterson,
1982, p. 1).
Em quase todas as sociedades escravocratas não-ocidentais,
não havia status de “pessoa livre” na lei. Realmente, não havia palavra para
“liberdade” na maioria dessas sociedades antes do contato com o Ocidente. Em
vez de definir as pessoas por “escravas” ou “não-escravas” em termos
polarizados, as pessoas tinham o status social de acordo com uma única dimensão
do poder: todas as pessoas eram vistas como propriedade. Indivíduos diferiam em
gradação de poder, espécie de hierarquia social, uns tendo privilégios e
poderes sobre os outros (Patterson, 1982). Eram sociedades em que o idioma
personalístico do poder imperava, de acordo com Patterson (1982).
Nessas sociedades, as pessoas não procuravam ser “livres” –
na conotação de liberdade individual ocidental -, pois, ironicamente, a
liberdade era um caminho certo para a escravidão. As pessoas tentavam
entranhar-se numa rede social de proteção de poder. A lógica é relativamente
simples: com o apoio de uma pessoa mais poderosa do que você, seria mais
difícil que alguém o escravizasse. Nas sociedades em que o idioma
personalístico do poder dominava, um pequeno número de reivindicações, poderes
e privilégios estava nas mãos de um grande número de pessoas. Nas sociedades
escravocratas ocidentais, contudo, o escravo dependia exclusivamente de uma
pessoa para inserir-se socialmente, o senhor (Patterson, 1982).
Foram os romanos que inventaram a ficção legal do domínio
ou posse absoluta. Os romanos enfatizavam duas categorias, a persona (o dono) e a res (a coisa), criando um paradigma
legal que acabou com a ambigüidade acerca do objeto da propriedade. A partir de
então, a propriedade não era mais a relação entre pessoas, mas a relação entre
pessoas e coisas. Assim, os romanos puderam considerar juridicamente o escravo
como propriedade, res, fugindo do
conceito de não-cidadãos dos gregos. A persona,
a res e o dominium foram os três elementos que passaram a pautar a relação
senhor-escravo. O escravo era acima de tudo uma coisa, uma “coisa humana”
(Patterson, 1982; Davis, 2003). Tal idéia tem muitas semelhanças com a
escravidão na África Pré-Colonial.
2.5.
A
Escravidão na África Pré-Colonial
Convém lembrar que escravos foram usados como moeda. Esta
tem muitas funções: unidade de conta, unidade de valor, método de pagamento e
meio de troca. Nas economias arcaicas e primitivas, Karl Polanyi (1980)
enfatiza que as várias funções da moeda foram institucionalizadas
separadamente, ou seja, um tipo de objeto podia ser utilizado como unidade de
valor, outro como meio de pagamento, e assim por diante. A moeda multifuncional
como se vê hoje é um fenômeno muito moderno. Os escravos significaram para muitas
sociedades arcaicas o elemento mais próximo da moeda multifuncional moderna. No
Oriente Próximo, escravos eram usados para pagar dotes, casas e até mesmo
multas (Polanyi, 1980; Patterson, 1982).
Na África pagã e muçulmana, escravos também eram usados
como moeda, por exemplo, pelos Iorubás, no que hoje é a Nigéria. Os traficantes
muçulmanos de escravos freqüentemente utilizavam escravos como reserva de valor
(Polanyi, 1980; Patterson, 1982). Os Sena de Moçambique vendiam pessoas de seu
grupo para tribos vizinhas para escapar da fome. Entregava-se o cativo em troca
de comida e ainda se diminuía o número de pessoas para se alimentar. “Esse tipo
de comércio muitas vezes garantia não apenas a sobrevivência de grupos
inteiros, mas também das mulheres, crianças e homens que eram transformados em
escravos nos grupos receptores” (Reis, 1987, p. 7).
A aquisição externa
de escravos já se realizava na África pré-colonial por meio da troca ou da
compra. Dessarte, o escravo já era um tipo de mercadoria, conseqüentemente uma
moeda (mercadoria com que se pode adquirir outras mercadorias). O método de
aquisição por meio de rapto também existia, apesar de ser menos difundido. O
ataque a tribos para se escravizar tornou-se comum quando se aumentou a demanda
européia pelos escravos para suprir as colônias americanas (Reis, 1987;
Thornton, 2004).
Nos séculos VII e VIII, os árabes mulçumanos conquistaram o
Norte africano. O resultado foi a arabização da porção setentrional do
continente (Thornton, 2004). Os árabes referiam-se às regiões não-árabes ao Sul
do Saara de o país dos negros. Ibn Khaldun, um intelectual árabe do século XIV,
foi um dos primeiros a divulgar a noção de que o clima tropical condicionou a
formação de uma “raça” negra apática e indolente. O tráfico de escravos
africanos foi conduzido inicialmente pelos árabes, na orla da África Oriental,
por meio de enclaves no Oceano Índico, como Mogadíscio, na atual Somália
(Magnoli, 2004).
O islã, é verdade, favoreceu
ideologicamente tanto a escravização de infiéis como sua libertação depois de
conversos (...) a conversão não significava necessariamente um passaporte para
a liberdade. Na verdade, com freqüência os escravos era catequizados e
convertidos exatamente para que pudessem ocupar-se de tarefas, como cozinhar,
para a execução das quais a religião recomendava mãos muçulmanas (Reis,
1987, p. 10).
Os africanos davam muita importância à reprodução de
escravos, o porquê da preferência por escravas. Estas desempenhavam importante
papel na estrutura social africana, porquanto atuavam como concubinas – relação
que estará largamente presente no Brasil.
Nas comunidades muçulmanas a
concubinagem era livremente aceita nos marcos da religião e a concubina podia
perfeitamente tornar-se esposa legítima de seu proprietário. Ao contrário das
sociedades cristãs do Novo Mundo, ali as amantes não só eram bem aceitas, mas
eram preferidas como companheiras e mães dos filhos e de seus donos. O controle
da sexualidade feminina nunca foi tão explicitamente ligado à acumulação de
prestígio e poder como aqui (Reis, 1987, p. 7).
As mulheres e crianças valiam mais no mercado interno
africano. Havia muitas vantagens em se obter mulheres e crianças. As mulheres,
como concubinas, inseriam-se com relativa facilidade na estrutura doméstica de
seus senhores – veremos o papel parecido da mucama no Brasil. Além disso, as
mulheres davam direitos sobre sua capacidade produtiva. Já as crianças
representavam força nova para o senhor e a casa (Reis, 1982; Boxer, 1969).
Adquiridos jovens, os escravos adaptavam-se mais rapidamente às estruturas de
parentesco da linhagem do senhor. O controle dos escravos era feito por base
nas normas e ideologia do parentesco, atuando como principal meio de controle
social. Ao contrário de seu irmão ou
sua irmã legítimos, o filho escravo jamais alcançava a maioridade, não se
livrava do paternalismo do senhor. Assim, havia a dependência eterna do
escravo, e como já visto, este não tinha autonomia em sua inserção nas relações
sociais (Reis, 1987; Thornton, 2004)). O escravo era caracterizado pelo que
Patterson (1982) chamou de social death,
ou seja, o escravo necessitava do senhor para sobreviver em realidade social na
qual os cativos não tinham poder algum de decisão sobre suas vidas.
A expulsão de um indivíduo de sua comunidade – cuja
existência é definida pela participação em grupo de parentesco – significava a
transformação do indivíduo em “estrangeiro”, mesmo que permanecesse no mesmo
território tribal. Dessa forma, ser vendido significava novos laços com um
outro grupo. Como estrangeiro, o indivíduo transformava-se no que os gregos
chamavam de não-cidadão, acarretando morte social do indivíduo, haja vista que
o escravo tinha a sua participação no grupo de parentesco de seu grupo natal
apagada – tendo que remodelar sua inserção no novo grupo pela dominação de seu
senhor e pela falta de livre-arbítrio (Reis, 1987; Patterson, 1982). A
escravidão na África, assim como no Novo Mundo, era sistema no qual os escravos
formam categoria social distinta, cujo trabalho é explorado de maneira
diferente daquele de outros grupos livres.
O historiador João José Reis (1987) pergunta-se o porquê da
importância do controle sobre pessoas em sociedades pouco diferenciadas na África
précolonial. Inicialmente, o autor sugere que em toda situação de abundância de
terras e escassez de mão-de-obra se verifica tendência ao trabalho forçado. O
controle sobre pessoas pode ser considerado também como forma de prestígio
social e poder político.
Reis (1987) sustenta que a África pré-colonial teve dois
tipos de escravidão: a doméstica (de linhagem) e a ampliada (ou escravismo). A
primeira, chamada de escravidão, funcionava como unidade reprodutiva ou como
meio multiplicador de dependentes para determinado grupo de parentesco. Seja
concubina, seja guerreiro, seja eunuco, a função do escravo não deve servir de
definição, uma vez que representavam apenas usos diferenciados dos escravos
pelos seus senhores. “O fato de que as variadas posições funcionais dos
escravos ocorriam tanto na escravidão quanto no escravismo africano mostra que
elas fazem parte da definição geral do modelo africano, sem que com isso
definam sistemas escravocratas particulares” (Reis, 1987, p. 16). O uso ampliado de escravos, ou escravismo,
conheceu diversas formas na África. Como nas Américas, os escravos foram
utilizados maciçamente na produção comercial e trabalharam sob condições
semelhantes aos cativos brasileiros. A África teve, contudo, um escravismo
peculiar, pois formaram-se Estados africanos especializados em escravizar povos
mais fracos.
A produção de escravos incentivou a formação de Estados
bélicos como Daomé, Ashanti, entre outros. Transformou sociedades menores e
pacíficas em reservas de cativos. O escravismo africano, como o americano,
organizou um sistema de articulação e dominação de sociedades mais simples e
com formas de produção primárias (Boxer, 1969; Davis, 2003). Dessa forma, as
plantações de cereais e coco no Quênia, por exemplo, utilizavam escravos
provenientes das margens do lago Niassa, entre Maláui, Moçambique e Tanzânia.
Deve-se mencionar que o comércio transatlântico de escravos fomentou a formação
desses Estados produtores de escravos, respaldados pela “campanha
civilizatória” dos europeus. Impérios africanos, no entanto, como Gana e Mali,
já praticavam a escravidão intensivamente, mesmo antes do boom do comércio escravista proporcionado pela demanda do Novo
Mundo (Thornton, 2004).
O Estado africano medieval de Gyaman - atuais Gana e Costa do
Marfim - é exemplo emblemático de sociedade que ao mesmo tempo produzia
escravos para o comércio externo e o consumo interno. Os dumko (escravos) eram utilizados para diversos serviços, desde
lavradores até artesãos. A população livre de Gyaman utilizava os escravos para
os trabalhos braçais, com exceção da prospecção de ouro, a qual era feita tanto
por homens livres quanto por escravos. A segunda geração de escravos era livre,
o que obrigava a reposição de escravos por meio da compra ou da guerra. No reino
Gyaman, o escravismo tornou-se o modus
operandi das relações socioeconômicas locais (Reis, 1987; Thornton, 2004).
Em Segou, no atual Mali, escravos-guerreiros eram a mão-de-obra usada para
capturar escravos. Vale recordar que a perseguição de africanos por africanos
gerou resistência, mormente, pela fuga individual, o que proporcionou a
formação de quilombos como no Novo Mundo (Reis, 1987).
. Os traficantes de escravos, árabes ou europeus, não se
aventuravam na captura de negros no interior da África. O trabalho de captura
de futuros escravos ficava nas mãos dos próprios africanos, o que beneficiava
muitas tribos ou clãs que queriam eliminar seus rivais. Assim, muitos reinos e
clãs africanos enriqueceram à custa do sofrimento de seus irmãos africanos.
Reinos negreiros surgiram com o tráfico, configurados em Estados (Magnoli,
2004).
6.
O Comércio
Transatlântico de Escravos
O último e maior sistema de comércio de escravos, o
atlântico, começou como desvio dos sistemas transaariano e mediterrâneo. Os
primeiros grupos de africanos mandados para o Novo Mundo vieram da península
Ibérica e os primeiros africanos mandados para as Américas diretamente da
África foram recrutados na costa do que hoje são Senegal e Gâmbia. Os
traficantes responsáveis pelo comércio transaariano e pelo mediterrâneo
supriram, no começo, a demanda de escravos pelo Novo Mundo. Com o passar do
tempo, todavia, a capacidade de abastecimento desses traficantes não deu conta
de atender a demanda do novo continente (Freyre, 2002; Davis, 2003).
Quase toda a Europa ocidental estava envolvida com o
lucrativo mercado negreiro do Atlântico. O papel dos escandinavos foi
significativamente menor do que o de portugueses, holandeses, ingleses e
franceses. Não obstante a Espanha ter sido importante consumidora de escravos,
seu papel no tráfico transatlântico era pequeno. O motivo não estava ligado a
considerações humanitárias, mas pelo fato dos espanhóis preferirem utilizar as
populações autóctones de suas colônias nas Américas como escravos. Os
portugueses foram os primeiros a desenvolver o comércio em escala
significativa, tendo seu monopólico no tráfico sido rompido já no final do século
XVII pelos holandeses. Nesta época, ingleses e franceses também já começavam a
se aventurar no tráfico de escravos (Patterson, 1982; Boxer, 1967; Thornton,
2004).
Os escravos vinham quase totalmente da costa oeste
africana, da região da Senegâmbia até Angola. Até o fim do século XVIII, a
maior parte dos escravos veio das tribos da costa da região de Guiné, área que,
apesar do grande número de tribos e línguas, possuía certa homogeneidade
cultural. No século XIX, a maior parte dos escravos veio do sudoeste africano
e, em menor número, de Moçambique e da África central (Boxer, 1967; Thornton,
2004). De acordo com Patterson (1982), entre 11 e 12 milhões de africanos foram
mandados para as Américas.
Os Estados Unidos importaram proporcionalmente o menor número
de escravos no continente. O país tinha, no entanto, em 1825, o maior número de
escravos do hemisfério. As ilhas caribenhas importaram quase 40% de todos os
escravos, mas, em 1825, tinham menos de 40% da população escrava nas Américas.
A diferença entre os EUA e o Caribe pode ser ilustrada pelo alto índice de
crescimento vegetativo da população escrava norte-americana, comparadas a alta
mortalidade e baixa fecundidade dos escravos vindos para o Caribe e o Brasil. O
motivo da diferença é controverso, mas muitos apregoam que a dieta, o abrigo e
as condições materiais contribuíam para a maior taxa de crescimento vegetativo
nos EUA (Boxer, 1969; Patterson, 1982; Davis, 2003).
Segundo Charles Boxer (1969), Portugal era a nação européia
que praticava o tráfico negreiro mais individualista, isto é, contava menos com
o triângulo comercial Europa-África-Novo Mundo, dando ênfase ao comércio direto
entre a África e o Brasil. Além disso, durante o século XVIII, a taxa de
mortalidade dos escravos nos navios negreiros caiu drasticamente. A principal
causa da morte de escravos em navios estava na má qualidade da comida e da
água, e nas condições sanitárias precárias – o que ocasionava epidemias
(Thornton, 2004).
A questão da variação do preço dos escravos reforça a idéia
de escravo como mercadoria – herança dos tempos romanos. No último quartel do
século XVII, o preço médio de um escravo era de três a quatro libras
esterlinas. Em 1740, o preço alcançou um pico de 18 libras, oscilando até
chegar a 17 libras em 1770. A lei econômica da oferta e da demanda funcionava
perfeitamente no caso dos escravos: guerras, variação no preço do transporte e
fatores políticos influenciavam fortemente o preço do escravo (Boxer,
1969).
Com o panorama sobre o comércio transatlântico,
enfocar-se-á a partir de então o cenário brasileiro. Para a compreensão deste,
é substancial a análise das relações raciais e a escravidão na Colônia e no
Império.
[1] O Código de Hamurabi é um
dos mais antigos conjuntos de leis já encontrados, e um dos exemplos mais bem
preservados deste tipo de documento da antiga Mesopotâmia. Segundo os
cálculos, estima-se que tenha sido elaborado por volta de 1700 a.C.
[2] No estoicismo, força criadora e mantenedora
do universo, agindo como princípio ativo que anima, organiza e guia a matéria,
além de determinar a lei moral, o destino e a faculdade racional dos homens.
[3] A Suábia (em alemão
Schwaben) é uma região
administrativa (Regierungsbezirk) do Estado (Bundesland) alemão da Baviera, cuja capital é a cidade de Augsburgo. Na Idade Média, a maior parte
da atual Suíça e
da Alsácia (hoje pertencente
à França) também fazia parte
da Suábia.
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