CAPITULO 02 - MONOGRAFIA TEOLOGIA - O STATUS SOCIAL DA MULHER NO ISRAEL NO MUNDO BÍBLICO


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O Status Social da Mulher em Israel

O início da história de Israel está vinculado à época dos patriarcas. Os ancestrais dos israelitas, e os próprios israelitas no princípio de sua história, levavam uma vida nômade ou seminômade (DE VAUX, 2003, p. 21). A estrutura social mais antiga nesse período era a família que abrangia pai, mãe ou mães, concubinas, filhos e escravos. Apesar das discussões levantadas por vários etnólogos sobre o tipo de constituição da família nos primórdios da história de Israel, “a família israelita é claramente patriarcal desde nossos documentos mais antigos” (DE VAUX, 2003, p. 42).
O termo corrente utilizado para designar a família nesse período era ‘casa paterna’, e as genealogias, salvo raras exceções, sempre são dadas a partir da linhagem do pai.
No tipo normal de casamento israelita, o marido é o senhor, o ba‘al de sua esposa. O pai tem sobre os filhos, inclusive os casados, se vivem com ele, e sobre suas mulheres, uma autoridade total, que antigamente chegava até o direito de vida ou morte: Judá condena sua nora Tamar, acusada de imoralidade, Gn 38.24. A família compõe-se daqueles elementos unidos ao mesmo tempo pela comunidade de sangue e pela comunidade de habitação. [...] À família pertencem também os servos, os residentes estrangeiros ou gerîm, os apátridas, as viúvas e órfãos, que vivem sobre a proteção do chefe de família (DE VAUX, 2003, p.42).

À medida que esta estrutura social primária, a casa paterna, se torna mais complexa surgem outras esferas de relacionamento onde novas pessoas passam a ser incluídas. O agrupamento de muitas famílias constituirá o clã. O ajuntamento de vários clãs dará origem às tribos. A união das diversas tribos resultará, na história tardia de Israel, no surgimento e consolidação do Estado Monárquico (SANTOS, 2009b, p. 34-52).
Um período marcante na história de Israel é a época dos Juízes, marcada pelo registro da conquista e apropriação da terra de Canaã pelos israelitas. Os narradores bíblicos dão como certo que, ao sair do Egito, o povo de Israel já estava organizado em núcleos mais amplos que tradicionalmente são denominados clãs e tribos. Da condição de nômades ou seminômades o povo, agora, dividido em tribos, precisou se adequar a um novo estilo de vida, resultante da conquista de Canaã, e se adaptar “à vida sedentária, à agricultura, à submissão às estações, aos trabalhos do campo, à criação de novos animais” (SICRE, 1990, p. 59). O Estado Monárquico, que sucede historicamente o período dos Juízes, consolidou em definitivo este novo estilo de vida.

A Tanakh (Lei, Profetas e Escritos), também denominada Antigo ou Primeiro Testamento, é a literatura sagrada do povo de Israel. Nela estão contidos registros históricos da gênese e desenvolvimento de Israel na condição de nação. No que diz respeito à relação entre o homem e a mulher e à condição social feminina na cosmovisão israelita, deparamo-nos, desde as primeiras páginas da Bíblia hebraica, com dois modelos simbólicos de construção do feminino, a partir de diferentes relatos da criação dos seres humanos.
O primeiro destes relatos apresenta o ato de criação dos seres humanos no seguinte teor: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou. Homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27 – BJ). Neste versículo das Escrituras encontramos uma narração mais próxima de um ideal antropológico teórico e unívoco a respeito da condição de homem e mulher. Aqui, ambos,
[...] são criados simultânea e equiparadamente como um unívoco ser humano, de um só nome, ’adam.  A situação antropológica pressuposta é de homonímia, univocidade conceptual e paridade antropológica. No estatuto antropológico e na dimensão simbólica eles são uma só realidade, “imagem e semelhança de Deus”. A isto nada obsta que apareçam de imediato especificados como macho e fêmea. [...] A imagem de unidade que aqui se exibe faz-nos pensar na fórmula solidária e igualitária de uma personalidade corporativa. No entanto, a segunda parte que respeita à individualidade concreta de cada um, o texto é menos orgânico. “Homem e mulher” é no texto original hebraico apenas “macho e fêmea” (RAMOS, 2001, p. 30).

Na direção oposta ao ideal de ser humano esboçado no primeiro relato da criação, encontramos a segunda narrativa que pode ser dividida em dois quadros, e que reflete com maior clareza e de modo mais concreto e real o status da mulher na sociedade israelita. O livro de Gênesis apresenta o primeiro quadro nas seguintes palavras:
Iahweh Deus disse: “não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda”. Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens de todas as aves dos céus e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou a auxiliar que lhe correspondesse. Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’ porque foi tirada do homem!” (Gn 2,18-23 – BJ).

Num mundo perfeito e paradisíaco, a mulher é criada de uma parte do próprio homem para ser a companheira ideal, aquela que possa assisti-lo, estar diante dele. A criação da mulher a partir da costela do homem significa que a mulher foi criada da mesma essência do homem. A condição de igualdade entre eles é enfatizada no final do relato a partir do nome que ela recebe. O nome na cultura hebraica era usado basicamente para designar “o caráter ou a função da pessoa” (GRUDEM, 1999, p. 380). Desse modo, o termo hebraico ִא ָשּׁ ה  (’ishshah), substantivo feminino traduzido por mulher, que
nomeia, em primeira instância, a nova criação de Deus, e que deriva da expressão hebraica ִ אישׁ  (’ish) homem, enfatiza numa primeira abordagem a
relação de completude que existe entre eles. A exclamação que subjaz o nome que ela recebe confirma essa premissa. A mulher, enfatiza categoricamente o homem, “é osso dos meus ossos e carne da minha carne!”
O segundo quadro, porém, que ocupa praticamente todo o terceiro capítulo do Gênesis descreve as fragilidades e degradações que passaram a caracterizar a condição feminina a partir do relato da tentação e da queda. O referido texto apresenta o seguinte registro:
A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: Vós podeis comer de todas as árvores do jardim?” A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte”. A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis!” Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal. A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também ao seu marido, que com ela estava, e ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois [...] Iahweh Deus [...] retomou [...] comeste, então, da árvore que te proibi de comer! O homem respondeu: “A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!” Iahweh Deus disse à mulher: “Que fizeste?” E a mulher respondeu: “A serpente me seduziu e eu comi”. [...] À mulher ele [Iahweh Deus] disse: “Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará” [...] O homem chamou sua mulher “Eva”, por ser a mãe de todos os viventes (Gn 3,1-20 – BJ).

A partir do texto acima apresentado, é possível inferir que a iniciativa de desobediência à ordem direta de Deus veio da mulher e não do homem. Foi Eva quem buscou inicialmente a sabedoria. Foi ela quem desafiou abertamente a Deus. Todavia, Deus responsabilizou o homem, e não a mulher, pelo caos que haveria de assolar o mundo:
Ao homem, ele disse: “Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos. Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3, 17-19 – BJ).

A condição secundária que a mulher passa a ocupar a partir do relato da queda por diante é expressa na descrição do tipo de relação que doravante foi estabelecida entre ela e o homem. Por ter sido considerada a porta de entrada do pecado e da morte para a humanidade, a mulher passa a ser descrita como alguém que se rebelará contra a ordem natural estabelecida por Deus no ato da criação. No projeto original ela deveria ser a auxiliadora do homem.
A expressão sentenciosa que recai sobre ela, “teu desejo te impelirá ao teu marido [...]” passou a ser reconhecida como sinal evidente de que a mulher teria doravante uma inclinação natural para rebelar-se contra a autoridade do homem.  Segundo Grudem, um estudo bem fundamentado sobre o termo ‘desejo’, que aparece neste versículo, apontou para a seguinte conclusão, que ele considerou convincente: “a palavra traduzida por “desejo” (teshûqah) significa: “desejo de conquistar” e indica que Eva teria o desejo ilegítimo de usurpar a autoridade do marido” (GRUDEM, 1999, p. 381).
O restante da sentença imposta à mulher, “[...] e, ele te dominará” mostrou, em contrapartida, que o homem também fugiria do propósito divino original de manter uma relação participativa e harmoniosa com sua companheira e assumiria de agora por diante uma posição de abuso de autoridade na sua relação com ela. A expressão ‘dominará’, assevera Grudem (1999, p. 381):
[...] (heb. Mashal) é um termo forte geralmente associado a governos monárquicos, e não em geral à autoridade dentro de uma família. A palavra certamente não implica nenhum governo “participativo”, com influência dos comandados, mas antes tem matizes de autoridade ditatorial ou absoluta e aviltante, e não de um governo ponderado e sensato. Sugere dureza, e não gentileza. O sentido aqui é que Adão abusará da sua autoridade, dominando a sua esposa com dureza algo que mais uma vez introduz dor e conflito num relacionamento antes harmonioso.

Além disto, a mulher recebe do homem um novo nome que descreve a posição que ela passa a ocupar no cenário da história da humanidade desde então. De auxiliadora, ela doravante passa a ser identificada pela expressão hebraica ַחָוּה (hawwah), Eva, nome este que traz um novo significado para sua existência, o de “mãe dos viventes”, tarefa que se mostrará laboriosa e espinhosa para todas as mulheres.
A ideia de que a mulher ocupa no cenário da criação a posição de companheira, de parceira do homem, antes de ser a mãe de seus filhos parece representar alguma originalidade antropológica. Todavia, no processo de construção da imagem feminina no decorrer da história de Israel, a grande ênfase recairá sobre o aspecto negativo do relato de criação, a tentação e a queda da humanidade através da mulher, tema este que será matizado na mentalidade dos israelitas até aos extremos. Aqui se encontra a origem de algumas das ideias mais negativas da literatura bíblica canônica e extracanônica sobre a condição da mulher.
Nas primeiras sociedades hebraicas caracterizadas, como afirmamos anteriormente, pelo estilo nômade de vida, a visão patriarcal predominou na vida inter e intrafamiliar. À medida que estas sociedades tornaram-se mais complexas e sedentárias, o que ocorreu de modo progressivo na época dos juízes até sua plena institucionalização no período dos reis, o patriarcado extrapolou o âmbito familiar e passou a predominar na vida pública. Surgiram, na esfera social, leis explícitas que subordinaram e inferiorizaram a mulher. A maternidade tornou-se a função essencial dela. A esterilidade sua desgraça pessoal e social (RAMOS, 2001, p. 32-33).
O ideal de casamento na sociedade israelita, baseado no relato da criação do primeiro casal humano conforme Gênesis 2, 21-24, era a relação monogâmica. Os primeiros patriarcas oriundos da linhagem de Sete (Gn 5), entre os quais se inclui Noé, foram monógamos. Na prática, porém, o que se observa em primeira instância é uma monogamia relativa como ocorria entre os mesopotâmicos e babilônios. Há uma esposa titular, sendo permitido, em casos específicos, tomar uma nova esposa ou uma concubina (DE VAUX, 2003, p. 46).

Na história tardia de Israel constata-se uma frouxidão em relação à observância da monogamia como um princípio. Na época dos juízes e dos reis de Israel a poligamia passou a ser reconhecida como um ato legal, o que pode ser constatado a partir do registro das numerosas esposas que compunham os haréns dos reis de Israel. O caso de Salomão é singular. De acordo com o registro de 1Reis 11,3, ele possuía no seu harém “setecentas esposas e trezentas concubinas”. É possível que esses números fabulosos e exagerados tenham como propósito enfatizar o esplendor de seu reinado, uma vez que, “em uma sociedade que admitia a poligamia, ter um harém numeroso era sinal de riqueza e poder, mas era também um luxo custoso que poucos podiam permitir-se. Isto tornou-se um privilégio real” (DE VAUX, 2003, p. 144). Apesar da prática da poligamia ter se tornado comum e aceitável entre líderes e poderosos em Israel, os registros bíblicos parecem indicar “que a monogamia era o estado mais frequente na família israelita” (DE VAUX, 2003, p. 48).
A mulher, sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva, passou, paulatinamente, a ser considerada propriedade particular que pertencia “primeiramente, a seu pai e depois a seu marido” (PRESSLER, 2000, p. 112). Nos mandamentos que constituem o famoso Decálogo (Ex 20) a mulher é enumerada entre as posses de um homem: “Não cobiçarás a casa de teu próximo. Não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo” (Ex 20,17 - BJ). O termo ‘tomar esposa’, usado comumente na língua hebraica para referir-se ao casamento, “se expressa pelo verbo da mesma raiz que ba‘al e significa, portanto, ‘tornar-se dono’ [da mulher]” (DE VAUX, 2003, p. 48). A vida de uma mulher israelita, portanto, restringia-se basicamente às atividades do lar e à consequente dependência do homem, fosse ele o pai ou o marido.
Por trás da intenção de se corporificar a sabedoria por meio da imagem feminina, conforme registro encontrado no livro de Provérbios 31,10-31, existe a descrição de um estereótipo da mulher perfeita, a partir do exemplo de uma dona de casa ideal. Ela é submissa e inteiramente fiel ao seu marido; seu maior objetivo é fazê-lo feliz durante toda a sua vida; ela cria bem seus filhos e administra com eficiência os bens domiciliares; ela distribui atividades entre os criados e as criadas e fiscaliza o trabalho deles; dedica-se à tecelagem e fabrica roupas para sua família, seus criados, e um excedente para ser negociado; ajuda os pobres e indigentes; não cultiva o ócio (não é preguiçosa!); ela é sábia em suas palavras e teme a Iahweh. As palavras iniciais desta perícope, “Quem encontrará a mulher de valor? Vale muito mais do que pérolas” (Pr 31,10 – BJ), todavia, parecem indicar certo ceticismo do narrador em relação à existência desta mulher.
No campo social e político a regra geral era a ausência ou o afastamento da mulher da vida pública. Isso não significa dizer que nenhuma figura feminina jamais exerceu função pública em Israel. Como ocorreu entre outros povos, há também na história de Israel, desde suas origens, inúmeros relatos da presença ativa de mulheres na Bíblia. Grande parte delas eram pessoas comuns que viveram praticamente no anonimato. Algumas mulheres tornaramse conhecidas e se destacaram pelas virtudes pessoais que possuíam. Poucas foram consideradas ‘heroínas’ ou ‘tiranas’. Contudo, aquelas que receberam essas designações se destacaram na esfera social, política e econômica e contribuíram, significativamente, para a formação de povo de Israel (ARNS, GORGULHO e ANDERSON, 2004, p. 11-116)16.
Como dissemos anteriormente, a ocupação pelas mulheres de funções públicas entre os povos da antiguidade pré-clássica nunca ocorreu de forma natural. Sempre que o fenômeno aconteceu esteve ligado ao uso, pela mulher, da força e da violência para usurpar o poder, ou, à debilidade de caráter de um líder ou regente, o que fez com que a mulher paulatinamente fosse ocupando o lugar do referido líder.  Dentre os vários exemplos da presença feminina no espaço público que aparecem no Antigo Testamento faremos menção de duas mulheres. A primeira, Débora, assumiu uma importante função social em Israel na época dos juízes devido a fraqueza de caráter de um líder local chamado Barac. A outra, Atália, que viveu na época da monarquia em Israel, forçou uma passagem no caminho de ascensão ao trono fazendo uso do expediente da violência para tornar-se rainha.
                                                 16 Nesta obra, os autores listam todas as narrativas bíblicas em que figuras femininas são mencionadas no Antigo Testamento.

Débora destacou-se num período de profunda crise política, econômica e social em Israel, época em que a nação passava por uma transição do estilo nômade de vida para o estilo sedentário, caracterizado pela apropriação da terra de Canaã. As narrativas que registram a participação desta mulher nas esferas política e bélica encontram-se registradas no livro de Juízes, capítulos 4 e 5. O relato descreve um período de vinte anos em que a nação de Israel foi subjugada, duramente oprimida e esteve debaixo do domínio de Jabin, rei de Canaã (Jz 4,1-3 – BJ). É neste cenário de opressão que o autor de Juízes insere a figura de Débora.
Nesse tempo, Débora uma profetisa, mulher de Lapidot, julgava em Israel. Ela tinha a sua sede à sombra da palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na montanha de Efraim e os israelitas vinham a ela para obter justiça. Ela mandou chamar Barac, filho de Abinoem de Cedes em Neftali, e lhe disse: “Iahweh, Deus de Israel não te ordenou: ‘Vai, reúne o monte Tabor e toma contigo dez mil homens dentre os filhos de Neftali e os filhos de Zabulon? Não atrairei a ti, na torrente do Quison, a Sísara, chefe do exército de Jabin, com os seus carros e as suas tropas e não o entregarei nas tuas mãos’?” Barac respondeu-lhe: “Se tu vieres comigo, eu irei, mas se não vieres comigo, não irei.” Débora lhe disse: “Irei, pois, contigo, porém, no caminho que seguires, a honra da vitória não será tua, porque é nas mãos de uma mulher que Iahweh entregará Sísara.” Então Débora se levantou e, com Barac, foi para Cedes. Barac convocou Zabulon e Neftali em Cades. Dez mil homens subiram, e Débora subiu com ele (Jz 4,4-10 – BJ).

Débora é apresentada como uma pessoa pública a quem recorriam os israelitas em busca de soluções para as suas demandas pessoais e comunitárias. O status de profetisa e juíza que ela ocupa em Israel não foi obtido por imposição ou sucessão familiar, senão, por carisma pessoal. Ela deve ter sido uma pessoa extraordinária, para que em seu tempo e rompendo com todos os impedimentos de uma cultura marcadamente patriarcal, Barac, um respeitado líder da tribo de Neftalí, fosse suplicar-lhe que o acompanhasse em batalha.
Os versículos seguintes (Jz 4,11-24 – BJ) descrevem a batalha entre os israelitas e os canaanitas com a consequente vitória de Israel sobre os exércitos do rei Jabin. O capítulo 5 registra o famoso cântico de Débora e Barac, um cântico de vitória onde Iahweh, o Deus de Israel, é celebrado por ter providenciado livramento das mãos do opressor, paz e descanso ao seu povo: “Assim perecem todos os teus adversários, Iahweh! Àqueles que te amam sejam como o sol quando se levanta na sua força! E a terra descansou quarenta anos” (Jz 5,31 – BJ).
Muito possivelmente numa época em que as condições nem sempre eram favoráveis às mulheres, um grupo – estaríamos possivelmente nos referindo a um grupo de mulheres – se ocupou de conservar e cantar as proezas da nossa protagonista. Ao que parece era importante e significativo para esse grupo conservar a memória de uma mulher “guerreira” no início do povo de Israel. Ao redor de Débora inicia-se, assim, uma memória feminina. Uma memória que canta e celebra as façanhas de mulheres. Por que não dizer que Débora quebra todas as regras implícitas do modo masculino de se ver e fazer política na Bíblia? (ROSSI, 2006, p. 285)

Apesar da posição de destaque que Débora ocupa na narrativa da libertação do povo de Israel do domínio do rei de Canaã, o narrador não esconde sua visão tipicamente patriarcal. Mesmo sendo inicialmente apresentada como profetisa, ela é identificada socialmente pelo nome de seu marido. Ela é Débora a “mulher de Lapidot”, personagem invisível na narrativa que, contudo, é mencionado como uma espécie elemento legitimador das ações de Débora. Ela não é uma revolucionária, nem uma mulher que questiona o status social das mulheres de seu tempo. Débora é casada. Ela tem um homem a quem se submete e que autoriza e legitima todos os seus atos.
Outro detalhe importante deve ser ressaltado à luz da presente narrativa. Ainda que Débora tenha sido reconhecida como profetisa e juíza pelos israelitas, o que certamente demonstra a grandeza de sua fé e o seu compromisso com a aplicação da justiça entre o povo, a tarefa de proporcionar a libertação nacional a Israel foi dada a Barac, um homem que possuía uma fé, no mínimo, vacilante.
A celebração da vitória que foi vaticinada por Débora, e que só se tornou realidade por causa de uma atitude heroica de sua parte, a de acompanhar Barac no campo de batalha, foi registrada pelo narrador como sendo o cântico que “Débora e Barac, filho de Abinoem, entoaram [...]” (Jz 5,1 – BJ), o que deixa clara sua preocupação em ocultar, o máximo possível, a figura feminina no relato bíblico de libertação.

O outro exemplo de participação de uma mulher na vida política do reino do Sul em Israel que analisaremos a seguir encontra-se registrado no Segundo livro dos Reis. O texto tem o seguinte teor:
Quando a mãe de Ocozias, Atalia, soube que seu filho estava morto, resolveu exterminar toda a descendência real. Mas Josaba, filha do rei Jorão e irmã de Ocozias, raptou furtivamente Joás, o filho de Ocozias, dentre os filhos do rei que estavam sendo massacrados e o colocou, com sua ama, no quarto dos leitos; assim ela o escondeu de Atalia e ele não foi morto. Ficou seis anos com ela, escondido no Templo de Iahweh, enquanto Atalia reinava sobre a terra (2Rs 11,13).

A figura central desta narrativa se chama Atalia. Além de ter sido a única mulher a assumir o governo no Reino de Judá, ela apossou-se do trono real mediante o assassínio da família real, dos descendentes do rei que seriam candidatos ao trono. Seu governo durou apenas seis anos. O narrador não registra detalhes de sua gestão enquanto rainha governante de Judá. Esse parece ser um artifício para minimizar sua administração e ocultar sua função social. Contudo, a gestão de Atalia é avaliada de modo negativo. O pessimismo em relação ao seu governo pode ter sido ocasionado, “pelo fato de ela não pertencer à casa de Davi, ou simplesmente porque era mulher” (ARNS, GORGULHO e ANDERSON, 2004, p. 66).
No texto que narra seu golpe político, além da presença da malévola Atalia, encontramos outra mulher chamada Josaba, que na verdade era meia irmã, e não irmã de Ocozias como aparece no texto, e esposa do sacerdote Joiada (2Cr 22,11). Ela desempenha um importante papel na narrativa bíblica. Josaba ocupa simbolicamente a função de uma legítima rainha-mãe que na ausência de seu marido deve cuidar para que sua prole, um descendente do sexo masculino assuma o trono. Foi graças a ela que um filho do rei Ocozias, Joás, permaneceu vivo. Todavia, seu ato heróico, por mais importante que seja, só confirma a posição secundária da mulher na sociedade. Ela prepara o caminho para que o homem seja projetado na sociedade.
Depois de Josaba escondê-lo por seis anos, uma revolta que uniu a classe sacerdotal, a guarda real e o movimento popular (2Rs 11,4-20) depôs a rainha condenando-a à pena de morte e entronizou Joás no trono real. Ele contava com apenas sete anos de idade quando se tornou rei (2Rs 12,1).O exercício real do governo ficou sob a responsabilidade do sacerdote Joiada, seu tutor, até que ele tivesse idade suficiente para reinar.
O registro da preservação milagrosa da vida de Joás e de sua ocupação do trono aos sete anos de idade reforça a ideia de que funções de ordem política devem necessariamente ser ocupadas por um homem, mesmo que ele não tenha condições ideais para isso. Nesse caso, um tutor, que também deve ser homem poderá desempenhar provisoriamente suas funções.
Na prática cúltica da sociedade israelita tardia a figura feminina praticamente desapareceu, e quando foi mencionada, geralmente esteve vinculada aos cultos pagãos e às práticas relacionadas ao ocultismo e à feitiçaria.
[...] o lugar da mulher é tanto menos significativo quanto mais oficial esse culto se apresentava e quanto mais monoteísta ele se ia tornando. Durante a época da monarquia a mulher só aparece no culto que é dirigido a deuses estranhos. E esta prática é expressão das heterodoxias ou transgressões mais criticadas pelos profetas na prática religiosa dos Hebreus. De igual modo, as práticas religiosas marginais, como, por exemplo, a adivinhação, são frequentemente associadas às mulheres (RAMOS, 2001, p. 35).

No Primeiro livro de Samuel, literatura canônica do Antigo Testamento, capítulo 28 versículos 3 a 25, temos um exemplo típico disso, o famoso relato do encontro de Saul, o primeiro rei de Israel, com uma feiticeira. Seu reinado experimentava uma profunda crise. Iahweh Deus o havia rejeitado e transferido o seu trono para a dinastia de Davi. Uma grande batalha estava prestes a ser travada contra os filisteus e a derrota era quase certa. Diante desse quadro, encontramos o seguinte relato:
Quando Saul viu o exército dos filisteus acampado, encheu-se de medo e o seu coração se perturbou. Saul consultou a Iahweh, mas Iahweh não lhe respondeu, nem por sonho, nem pela sorte nem pelos profetas. Saul disse então aos seus servos: “Buscai-me uma mulher que pratique a adivinhação para que eu lhe fale e a consulte”. E os servos lhe responderam: “Há mulher que pratica a adivinhação em Endor” (1Sm 28,6-7).

Como se vê, no relato acima, a situação de crise obriga Saul a buscar ajuda no ocultismo, prática que ele perseguiu com veemência a ponto de quase erradicá-la do meio da nação de Israel nos primeiros anos de seu governo. Nas palavras do rei: “Buscai-me uma mulher que pratique a adivinhação para que eu lhe fale e a consulte”, e na imediata resposta dos seus servos: “Há uma mulher que pratica adivinhação em Endor”, o narrador faz questão de enfatizar a participação da figura feminina como principal agente das práticas ocultas.
Vez ou outra, porém, encontramos na Bíblia, narrativas que atribuem à mulher uma função religiosa de relevância para a sociedade. É o caso das profetisas. Todavia, esse papel social “é, no geral, de tipo carismático, o que sublinha o fato de não ser normalmente reconhecido como uma prática institucionalizada” (RAMOS, 2001, p. 35).
No campo da moral, o adultério e a prostituição foram reconhecidos como males sociais vinculados especificamente à figura feminina. Entre os vários escritos do Antigo Testamento que tratam especificamente de questões morais relacionadas à figura feminina encontram-se os livros sapienciais, escritos com a finalidade de oferecer conselhos práticos para o bem viver. O livro de Provérbios, obra canônica da Bíblia hebraica produzida entre os séculos X e V a.C.,  contém uma gama enorme de orientações práticas para os jovens a fim de que eles adquiram a sabedoria e escapem das garras da mulher estrangeira e sedutora. Nele, o sábio orienta a seu filho:
Meu filho, guarda as minhas sentenças, conserva os meus preceitos; guarda os meus preceitos e viverás, a minha instrução seja a menina dos teus olhos. Ata-a aos dedos, escreve-a na tábua do coração; dize à sabedoria: “Tu és minha irmã”. Chama a inteligência de tua parenta, para que te guarde da mulher estrangeira, da estranha cuja palavra é sedutora: Estava na janela de minha casa, olhando pelas frestas, e vi os jovens ingênuos e percebi entre as crianças um rapaz sem juízo! Ele passa ao lado, perto da esquina onde ela está, e vai para a casa dela, na bruma, ao entardecer, no coração da noite e da sombra. Uma mulher lhe vem ao encontro, vestida como prostituta, com falsidade no coração. Ela é esperta e insolente, e os seus pés não param em casa: ora está na rua, ora está na praça, espreitando todas as esquinas. Ela o agarra e o beija, e depois diz de modo sério: “Ofereci um sacrifício de comunhão, porque hoje cumpro o meu voto, por isso saí ao teu encontro, ansiosa por ver-te e te encontrei! Cobri a cama de colchas, de tecidos bordados, estendi lençóis do Egito. Perfumei o quarto com mirra, aloés e cinamomo. Vem embriaguemonos com carícias até o romper do dia, saciemo-nos com amores. Pois o meu marido não está em casa, ele fez longa viagem, levou a bolsa com o dinheiro e não voltará até a lua cheia”. Com tantos discursos o apanha, e o atrai com lábios lisonjeiros; o infeliz corre atrás dela, como o boi vai ao matadouro, como se embaraça um cervo pego na rede, como o pássaro que voa para a armadilha, sem saber que perderá a vida. Agora escutai-me, meus filhos, prestai atenção às minhas sentenças: não se extravie o teu coração por seus caminhos, não te percas em seus trilhos. Pois ela assassinou a muitos, e os mais fortes foram as suas vítimas; sua casa é o caminho do Xeol, suas escadas levam para os átrios da morte (Pr 7,1-27 – BJ).

O livro de Eclesiástico ou Sabedoria de Jesus Ben Sirá, literatura sapiencial deuterocanônica do Antigo Testamento produzida no século II a.C., segue a mesma trilha. Nele, o autor aponta, dentre outras coisas, uma série de cuidados que o homem deve ter em relação à mulher. Ben Sirá aconselha aos homens:
Não te entregues a uma mulher, para que ela não usurpe tua autoridade. Não vás ao encontro de cortesã, para que não caias em suas ciladas. Não te entretenhas com bailarina, para que não sejas seduzido por suas artimanhas. Não fites uma jovem, para não ser pego na armadilha quando ela espiar. Não te entregues às prostitutas, para não perderes o teu patrimônio. Não gires o teu olhar pelas ruas da cidade e não vagueies por seus lugares desertos. Desvia o teu olho de mulher formosa, não fites beleza alheia. Muitos se perdem por causa da beleza de mulher, por sua causa o amor se inflama como fogo. Não te assentes nunca à mesa com mulher casada, não banqueteies com ela tomando vinho, a fim de que o desejo não te desvie para ela, e, na tua paixão, escorregues para a perdição (Eclo 9,2-13 – BJ).

O autor de Eclesiástico leva aos extremos o seu sentimento misógino quando coloca sob suspeita o caráter moral das mulheres. Segundo ele,
Qualquer ferida, menos a do coração; qualquer malícia menos a da mulher; qualquer miséria, menos a causada pelo adversário; qualquer injustiça, menos a que vem do inimigo.  Não há pior veneno que o da serpente, não há pior cólera que a da mulher. Prefiro morar com leão ou dragão a morar com mulher perversa. A perversidade da mulher muda a sua fisionomia, obscurece-lhe o rosto como o de urso. O seu marido senta-se entre amigos e contra a vontade geme amargamente. Pouca maldade é comparada com a da mulher, caia sobre ela a sorte dos pecadores. Como ladeira arenosa para os pés de velho, assim é mulher faladeira para marido tranquilo. Não te deixes prender pela beleza da mulher, não te apaixones por mulher. É motivo de ira, descaramento e grande vergonha mulher que sustenta o seu marido. Coração abatido, semblante triste, coração ferido; eis a obra de uma mulher má. Mãos inertes, joelhos vacilantes, assim é a mulher que não proporciona felicidade ao marido. Foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos. Não dês saída à água, nem liberdade de falar à mulher má. Se ela não obedece ao dedo e ao olho, separa-te dela (Eclo 25,13-26 – BJ, Itálicos nossos).

O registro acima é, possivelmente, um das mais tristes e preconceituosas descrições da imagem feminina encontradas em textos canônicos ou deuterôcanônicos do Antigo Testamento. As figuras de linguagem utilizadas pelo autor como parâmetro de comparação para revelar o caráter moral da mulher revelam a aversão de uma cultura patriarcal à figura feminina. A maior malícia, a pior cólera, e grande maldade pertencem à natureza feminina. Encarar bestas ferozes como um leão ou Dragão é mais fácil que estar diante de uma mulher perversa. Sua beleza física é vista como um laço, uma tentação. A obra prima de uma mulher resume-se a ferir corações e a entristecer semblantes. Ela é, em última instância, a grande responsável por todas as desgraças que a raça humana vivencia. Ela trouxe o pecado e a morte ao mundo. Daí, a necessidade de mantê-la em absoluta sujeição ou afastar-se definitivamente dela.
Como se pode constatar, a mulher passou, aos poucos, a ser descrita como fonte de tentação e de males, em alusão ao quadro narrado no livro de Gênesis capítulo três, texto este que se tornou uma espécie de referência e paradigma de interpretação negativa da figura feminina e que consolidou na cosmovisão dos israelitas uma imagem pessimista e sombria da mulher (RAMOS, 2001, p. 34-37).

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