A Lei da Torá sobre as Cidades Refúgios

Hoje, um senhor bateu ao meu portão vendendo pão de mel — deliciosos, por sinal. Seu rosto trazia marcas profundas, não apenas de tempo, mas de dor. Descobri que, há alguns meses, ele foi atropelado por um motorista embriagado. Sobreviveu, mas carrega sequelas graves: a bacia fraturada, tímpano estourado, dificuldades neurológicas visíveis, e agora precisa urgentemente de uma tomografia craniana.

Enquanto ele luta para se sustentar vendendo doces, o motorista responsável está livre. Conseguiu reunir testemunhas que afirmaram que a vítima teria tentado se matar. O processo? Arquivado. Nenhuma responsabilização. Nenhum pedido de perdão. Nenhuma reparação.

Mas… e se esse senhor tivesse morrido naquele dia? Será que o motorista responderia por homicídio? E mesmo que respondesse, seria apenas mais um número nas estatísticas de um sistema que pune ou absolve sem transformar?

Essa história me fez lembrar de um antigo sistema da Torá — as Cidades de Refúgio. Quando alguém tirava a vida de outro por acidente, como num desastre de trânsito sem intenção, não era simplesmente libertado com uma multa nem punido com décadas de prisão. Era enviado a uma cidade especial, onde viveria exilado até a morte do Sumo Sacerdote.

“E designareis cidades para que sirvam de refúgio, para que nelas fuja o homicida que matar alguém sem intenção.”
(Números 35:11)

Mas essas cidades não eram prisões comuns. Eram habitadas por levitas — mestres espirituais, homens de sabedoria e cuidado. Ali, o homicida acidental não era abandonado, mas acolhido por uma comunidade que respirava reverência pela vida. Vivia entre homens que se levantavam antes do amanhecer para orar, estudar, ensinar, servir.

A lógica era clara: quem havia causado a morte de alguém por negligência precisava viver diariamente entre aqueles que preservavam vidas. Precisava ver, com os próprios olhos, o valor sagrado de cada existência.

Esse convívio era um espelho constante, um chamado à responsabilidade, à atenção aos detalhes, à consciência de que cada decisão importa. Um acidente pode parecer pequeno, mas seu impacto é imenso — e só pode ser curado com transformação interior.

Havia ainda um detalhe tocante: a mãe do Sumo Sacerdote levava presentes aos exilados — comida, roupas — “para que não desejassem a morte de seu filho”, pois era com sua morte que terminava o exílio. Que mulher faria isso? Uma mãe que compreendia o valor da vida, mesmo da vida de quem, sem querer, tirou outra.

A presença dessa mulher criava um dilema moral profundo: como desejar a morte do filho de quem te trata com tanto cuidado? O presente não era suborno — era misericórdia em forma palpável. Era um lembrete de que toda vida importa.

Essa antiga lei revela algo poderoso que nossa sociedade moderna quase esqueceu: pessoas não são definidas para sempre pelos seus erros. Transformação real é possível. Não se trata de ignorar a culpa, mas de oferecer um ambiente onde a alma seja reeducada.

Hoje, vivemos em um mundo que cancela, descarta, rotula. Mas a Torá nos ensina que quem causa um dano irreparável ainda pode se tornar uma força de bem — se for cercado por sabedoria, por verdade, por amor.

A pergunta que fica é: ainda acreditamos na possibilidade de transformação? Ou aceitaremos viver num sistema que pune sem restaurar, que absolve sem ensinar, que condena sem redimir?


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