Maria Madalena não era uma prostituta


 

Todos já ouvimos: “Maria Madalena, a mulher pecadora, a prostituta arrependida que se ajoelhou aos pés de Jesus.”

Mas… o texto bíblico nunca diz isso. Esse rótulo foi fruto de uma fusão indevida de personagens, ocorrida séculos depois, e não de leitura direta das Escrituras.

Este é um caso emblemático de como a tradição pode reescrever histórias, e um lembrete do valor de voltarmos aos textos originais e à língua em que foram escritos.

O que o texto realmente diz

A primeira aparição de Maria Madalena está em Lucas 8:2:

Μαρία ἡ καλουμένη Μαγδαληνή, ἀφ’ ἧς δαιμόνια ἑπτὰ ἐξεληλύθει
“Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios.”

  • Μαρία (Maria) — forma grega do hebraico מִרְיָם (Miryam), nome comum judaico feminino no século I.[¹]

  • ἡ καλουμένη (hē kaloumenē) — “a que é chamada”, título de identificação.[²]

  • Μαγδαληνή (Magdalēnē) — “oriunda de Magdala”, cidade pesqueira na costa oeste do Mar da Galileia.[³]

  • ἀφ’ ἧς δαιμόνια ἑπτὰ — “da qual [saíram] sete demônios”, expressão que pode indicar libertação de intensa opressão espiritual ou enfermidade atribuída ao mundo espiritual.[⁴]

  • ἐξεληλύθει (exelēlythei) — perfeito do verbo “sair”, indicando que a libertação era definitiva.[⁵]

Nenhuma menção a prostituição, pecado sexual ou escândalo moral. Apenas cura e restauração.

Já a mulher “pecadora” que unge Jesus em Lucas 7:37 é apresentada assim:

καὶ ἰδοὺ γυνὴ ἥτις ἦν ἐν τῇ πόλει ἁμαρτωλός
“E eis que uma mulher daquela cidade, pecadora...”

  • ἁμαρτωλός (hamartōlós) — literalmente “alvo perdido” (do verbo ἁμαρτάνω, hamartanō — errar o alvo). No judaísmo, podia designar tanto imoralidade sexual quanto idolatria, fraude, ou qualquer forma de vida fora da Torá.[⁶]

Essa mulher é anônima no texto, e nunca ligada a Maria Madalena.

O que significa “Madalena”

Μαγδαληνή (Magdalēnē) é apenas um adjetivo geográfico: “vinda de Magdala” (do hebraico מִגְדָּל, Migdal, “torre”).[⁷]
Assim como “Jesus de Nazaré” ou “Paulo de Tarso”, identifica origem e não caráter moral.

De onde veio a ideia da prostituta

Em 591 d.C., o Papa Gregório I pregou um sermão em que fundiu três mulheres distintas:

  1. Maria Madalena — libertada de sete demônios (Lucas 8).

  2. A mulher pecadora — que unge Jesus (Lucas 7).

  3. Maria de Betânia — irmã de Marta e Lázaro (João 11).

Esse sermão influenciou profundamente o imaginário cristão medieval. Por mais de mil anos, pinturas, sermões e peças de teatro repetiram essa fusão, até que a pesquisa bíblica moderna voltou ao texto original e mostrou que não existe base bíblica para essa junção.

Hoje, a Igreja Católica reconhece Maria Madalena como santa e “apóstola dos apóstolos”, título usado pelos Pais da Igreja por ela ter sido a primeira a testemunhar e anunciar a ressurreição (João 20:1–18).

Por que isso importa

Não é mero detalhe histórico. É um caso de como a tradição pode distorcer a memória das Escrituras.
Maria Madalena não é um aviso moral contra o pecado sexual — é um testemunho do poder da graça e da restauração:

  • Discípula fiel que seguiu Jesus até a cruz.

  • Primeira testemunha do Cristo ressuscitado.

  • Mensageira da notícia que mudaria a história do mundo.

Recuperar sua verdadeira história é restaurar não só sua honra, mas a integridade do próprio Evangelho.

Notas de rodapé

[¹] Miryam é nome ligado à raiz hebraica mar (amargo) ou meri (rebelião), possivelmente relacionado à experiência do Êxodo.
[²] Forma passiva do verbo kaleō, usada para indicar apelidos, títulos ou identificação social.
[³] Magdala era centro de comércio de peixe salgado, localizada a 5 km de Cafarnaum.
[⁴] No contexto judaico, doenças e distúrbios podiam ser interpretados como influência demoníaca (cf. Marcos 9:17–27).
[⁵] O perfeito grego indica ação concluída com efeito presente — libertação permanente.
[⁶] “Pecador” (hamartōlós) podia significar transgressor da Lei em qualquer aspecto, não só moral sexual (cf. Lucas 19:7).
[⁷] Migdal (“torre”) era nome comum de localidades na Galileia e Judéia, mas aqui provavelmente se refere à Magdala Tarichaea, conhecida por suas indústrias de pesca.


Segue uma  tabela comparativa para diferenciar claramente Maria Madalena, a mulher pecadora de Lucas 7 e Maria de Betânia, com base no texto bíblico, contexto histórico e idioma original:

Três Mulheres, Três Histórias Distintas

CaracterísticaMaria MadalenaMulher Pecadora (Lucas 7)Maria de Betânia
Referência Bíblica PrincipalLucas 8:2; Marcos 15:40-41; João 20:1–18Lucas 7:36–50João 11:1-44; João 12:1–8
Nome no TextoΜαρία ἡ καλουμένη Μαγδαληνή (Maria hē kaloumenē Magdalēnē)γυνὴ ἁμαρτωλός (gynē hamartōlós — “mulher pecadora”)Μαρία ἡ τοῦ Λαζάρου (Maria hē tou Lazarou — “Maria, irmã de Lázaro”)
Significado do Nome/Título“Maria, de Magdala” (cidade na Galileia)Sem nome; definida pela condição moral percebida“Maria, de Betânia” (aldeia a 3 km de Jerusalém)
Ação NarradaLibertada de sete demônios; discípula fiel; testemunha da ressurreiçãoUngiu os pés de Jesus com perfume e lágrimas na casa de um fariseuUngiu os pés de Jesus com perfume caro seis dias antes da Páscoa
Verbo/Termo-Chaveἐξεληλύθει (exelēlythei — “saíram [demônios]”)ἁμαρτωλός (hamartōlós — pecadora, fora da lei)ἤλειψεν (ēleipsen — “ungiu”)
LocalMagdala (Galileia)Cidade não identificada na Galileia ou JudeiaBetânia (próxima a Jerusalém)
Ligação com JesusSeguidora desde a Galileia até a cruz e o sepulcroProcurou Jesus para arrependimento e honraAmiga íntima de Jesus, irmã de Marta e Lázaro
Mensagem CentralLibertação e envio para anunciar a ressurreiçãoPerdão e amor maior por quem foi muito perdoadoAdoração e reconhecimento profético da morte de Jesus
Confusão HistóricaFundida com as outras duas no sermão do Papa Gregório I (591 d.C.)Associada erroneamente a Maria MadalenaAssociada erroneamente à mulher pecadora
Status no NT“Apóstola dos apóstolos” (primeira a anunciar a ressurreição)Modelo de arrependimento e amor gratoModelo de devoção e discernimento espiritual

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