O perigo da naturalização do feminicídio



Ela caiu do alto, não por acidente, mas por um ato de violência fria e calculada. Seu corpo foi esmagado, pisoteado, despedaçado, irreconhecível aos olhos humanos. Mas a tragédia não termina na morte física; o silêncio que a segue, a naturalização de sua dor, é outra forma de brutalidade. Este é o eco de um feminicídio que atravessa séculos, do Antigo Testamento até hoje, quando algumas mortes de mulheres são vistas como “merecidas”, enquanto outras provocam indignação.

Jezabel, rainha de Israel, viveu um destino cruel. Traída por aqueles em quem confiava, lançada do alto de seu palácio, esmagada por cavalos, seu corpo foi degradado, e nem a sepultura lhe foi concedida (2Rs 9.33-35). Muitos, inclusive dentro das igrejas, justificam sua morte, lembrando que era idólatra, estrangeira, mulher de poder. Mas ao naturalizar sua morte como consequência de sua vida, ignoramos que Deus não mede o valor de uma vida pela religião, origem ou posição social. Jezabel é reduzida a uma lição moral, quando na verdade seu assassinato revela o quanto a sociedade patriarcal e violenta distorce o valor humano.

Contrastando com a rainha, o feminicídio da concubina do levita em Juízes 19 provoca indignação imediata. Violentada por um grupo de homens, assassinada com brutalidade, seu sofrimento desencadeia guerra civil, destrói famílias, provoca sequestros e casamentos forçados. A comunidade se escandaliza; homens e mulheres sentem o horror, a indignação é visceral. Mas, então, surge a pergunta inevitável: o que diferencia a morte da concubina da morte de Jezabel? Ambos os casos resultam da violência masculina sobre mulheres, ambos são cruéis e injustos. Por que um choca e o outro é naturalizado? Talvez porque, ao longo da história, aprendemos a aceitar a morte de mulheres estrangeiras, poderosas ou idólatras como uma consequência “natural”, um aviso ou punição, enquanto a dor de mulheres comuns, fracas ou inocentes, ainda nos provoca indignação.

A realidade é que ambos os feminicídios revelam sociedades em desequilíbrio, distantes da vontade de Deus. A narrativa da concubina fecha o livro de Juízes, que também celebra mulheres fortes como Débora e Jael, líderes de coragem e fé (Jz 1.11; 5.32). O contraste não poderia ser mais claro: a equidade e a força feminina coexistem com a violência e a injustiça quando a sociedade se afasta dos princípios divinos (Jz 17.6; 21.25). A justiça, no entanto, de forma humana ou divina, age. A morte de Jezabel, embora profetizada por Elias (1Rs 21.23), não permanece impune; Jeú, seu assassino, perde conquistas, territórios e estabilidade (2Rs 10.31-33). O sofrimento da concubina também provoca consequências: a guerra civil leva à responsabilização dos culpados, e a narrativa deixa claro que a violência não é silenciosa diante de Deus.

Deus criou a humanidade à Sua imagem, homem e mulher igualmente (Gn 1.27). Toda forma de violência entre gêneros nasce da ruptura desse ideal divino. Nenhum sofrimento é justificável. Nenhum ato de crueldade pode ser aceito como merecido. Quando aceitarmos a morte de Jezabel como normal e nos escandalizarmos apenas com a da concubina, corremos o risco de medir o sofrimento feminino com régua desigual.

Que cada história de dor, cada corpo pisoteado, cada mulher silenciada, seja um alerta para nós. Que o clamor não seja ignorado, que a indignação não seja seletiva. Que possamos reconhecer a sacralidade da vida feminina, honrar a justiça divina e rejeitar a naturalização de qualquer forma de violência. A vida de cada mulher é valiosa aos olhos de Deus, e nenhum ato de violência jamais poderá ser legitimado diante do Seu olhar.

Ao meditar nessas narrativas, percebe-se um convite profundo: olhar para a violência não como algo distante ou histórico, mas como um reflexo daquilo que ainda permitimos em nossa sociedade e em nossas igrejas. Jezabel e a concubina nos chamam à consciência, à transformação, à justiça que brota não da punição seletiva, mas do reconhecimento da dignidade de todas as mulheres criadas à imagem de Deus.

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