Exegese de Êxodo 17:1–7 e Números 20:1–13

 Introdução

Poucos episódios na Torá revelam com tanta clareza a pedagogia de Deus quanto os dois momentos em que Deus fez jorrar água da rocha no deserto.
Em Êxodo 17:1–7 e Números 20:1–13, o milagre é semelhante: o povo tem sede, murmura, e Deus provê água de uma rocha.
Mas há uma diferença crucial — da primeira para a segunda vez, Deus muda o método.

Essa mudança não é apenas um detalhe técnico, mas um marco na transição espiritual de Israel: da fé baseada em sinais para a fé firmada na Palavra.

I. Primeira ocorrência – Êxodo 17:1–7

Texto base (ARA):

“E disse o Senhor a Moisés: Passa adiante do povo, toma contigo alguns dos anciãos de Israel, e leva contigo a vara com que feriste o rio, e vai.
Eis que estarei diante de ti ali sobre a rocha em Horebe; ferirás a rocha, e dela sairá água, e o povo beberá. E Moisés assim o fez, à vista dos anciãos de Israel.”
(Êxodo 17:5–6)

 Exegese

Local: Refidim, perto do monte Horebe.
Verbo central: נָכָה (nakah) — “ferir”, “golpear”, “atingir”.
Instrumento: A vara de Moisés — símbolo do poder divino que abriu o Mar Vermelho e feriu o Nilo.

Deus ordena: “Ferirás a rocha”.
O verbo está no imperativo, e o uso da vara indica autoridade visível.
O povo acabara de sair do Egito, ainda sem maturidade espiritual; portanto, Deus se revela com sinais concretos e tangíveis.

O texto enfatiza: “Eis que estarei diante de ti ali sobre a rocha” — ou seja, a presença de Deus se manifesta sobre a rocha.
A tradição judaica entende que a rocha (tzur) é símbolo da presença do próprio YHWH (cf. Dt 32:4).

O apóstolo Paulo interpreta isso espiritualmente:

“... e todos beberam da mesma bebida espiritual, porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo.”
(1Co 10:4)

Assim, a rocha ferida representa Cristo ferido na cruz, de cujo lado jorram sangue e água (Jo 19:34).

II. Segunda ocorrência – Números 20:1–13

Texto base (ARA):

“Toma a vara, e ajunta a congregação, tu e Arão, teu irmão, e falai à rocha perante os seus olhos, e dará a sua água.
Assim tirarás água da rocha e darás de beber à congregação e aos seus animais.
Moisés levantou a mão e feriu a rocha duas vezes com a sua vara; e saíram muitas águas, e bebeu a congregação e os seus animais.
Disse o Senhor a Moisés e a Arão: Visto que não crestes em mim, para me santificardes diante dos filhos de Israel, por isso não fareis entrar esta congregação na terra que lhes dei.”
(Números 20:8–12)

Exegese

Local: Cades, no deserto de Zim.
Tempo: Quase 40 anos após o primeiro episódio.
Verbos principais:

  • Daber (דָּבַר) — falar, comunicar, declarar.

  • Nakah (נָכָה) — golpear, o mesmo verbo da primeira passagem.

Desta vez, o mandamento divino é diferente:

Falai à rocha.”

O verbo daber está no plural (“falai”), porque Deus ordena que Moisés e Arão usem a palavra, não a força. Os dois, em comunhão deveriam usar a Palavra. 
Mas Moisés, dominado pela irritação e talvez pela memória do primeiro milagre, bate na rocha duas vezes (vayakh).

O milagre acontece — a água jorra — mas a obediência é parcial, e a santidade de Deus é comprometida diante do povo.
Por isso, o Senhor declara:

“Visto que não crestes em mim, para me santificardes... não entrareis na terra.”

Arão também foi punido e não pode entrar na terra. "Entrareis" também está no plural no hebraico.

Deus anuncia o momento da morte de Arão em Números 20:24–28:

“Arão será recolhido ao seu povo, porque não entrou na terra que dei aos filhos de Israel, porquanto fostes rebeldes à minha palavra, nas águas de Meribá.”
(Nm 20:24)

Moisés, então, sobe com Arão e Eleazar (filho de Arão) ao monte Hor.
Ali, a veste sacerdotal é retirada de Arão e colocada sobre Eleazar — símbolo da transferência do sacerdócio — e Arão morre no monte (Nm 20:27–28).

 Ou seja, Arão perde o privilégio de entrar e entrega o sacerdócio antes da terra prometida.

O que a omissão de Arão quer dizer:

a) Responsabilidade compartilhada

Arão não bateu na rocha, mas participou da incredulidade.
Deus havia dito: “Falai à rocha, vós dois”, e nenhum dos dois o fez.
No hebraico, a acusação é conjunta:

לֹא־הֶאֱמַנְתֶּם בִּי (lo he’emantem bi) — “vocês dois não creram em mim.”

A culpa, portanto, não foi de um ato físico isolado, mas de uma falha espiritual conjuntanão santificar o Nome de Deus diante do povo.

b) Santificar o Nome

Santificar (hebraico leqaddisheni) significa revelar o caráter santo de Deus diante do povo.
Moisés e Arão, como líderes espirituais, deveriam representar o modo correto de lidar com a murmuração — com confiança e mansidão.
Mas Moisés gritou:

“Ouvi agora, rebeldes! Porventura faremos sair água desta rocha para vós?”
(Nm 20:10)

A fala muda o foco: o “nós” substitui o “Deus”.
E Arão, ao não corrigir, silencia diante da distorção.
Assim, ambos falharam em refletir a santidade divina.

 III. O contraste teológico e linguístico

Elemento Êxodo 17 Números 20
Lugar     Horebe / Refidim Cades / Meribá
Verbo Nakah (ferir) Daber (falar)
Instrumento Vara (autoridade) Palavra (fé)
Povo Imaturo, recém-liberto Nova geração, às portas de Canaã
Lição Deus age por sinais visíveis Deus age pela fé e pela palavra
Resultado Água e aprendizado Água e disciplina

 IV. Significado dos verbos no hebraico

  1. נָכָה (nakah) – ferir, bater, golpear.

    • Expressa ato físico de força.

    • Em contexto teológico, representa juízo ou sacrifício (como quando o cordeiro é ferido).

  2. דָּבַר (daber) – falar, comunicar.

    • Expressa revelação, autoridade verbal e espiritual.

    • O mesmo verbo é usado em Gênesis 1 — “Deus falou e tudo se fez.”

    • Aqui, o poder de Deus se manifesta pela voz e não pela força.

Deus queria ensinar a Moisés que, à medida que o povo amadurece, a fé deve se mover da dependência do milagre para a confiança na Palavra.

 V. Interpretação rabínica e patrística

  • Rashi (séc. XI):
    “Deus ordenou que falasse para que o povo aprendesse que, se até uma rocha responde à palavra divina, quanto mais o homem.”

  • Midrash Tanchuma (Chukat 9):
    “Na primeira vez, Deus mostrou Seu poder; na segunda, desejava mostrar Seu ensino.”

  • Orígenes (Homilias sobre Números):
    “Cristo foi ferido uma vez — a segunda vez basta que se fale d’Ele, e a graça flui.”

  • Agostinho:
    “Ferir a rocha novamente é simbolicamente repetir a cruz; mas Cristo foi ferido uma vez por todas.”

 VI. Aplicações espirituais

  1. O método de Deus muda, mas Sua fidelidade não.
    O mesmo Deus que usou a vara usa agora a voz — Ele deseja que aprendamos a confiar mais no comando da Palavra do que no impacto do gesto.

  2. Liderança exige discernimento do tempo de Deus.
    Moisés falhou não por incredulidade total, mas por agir segundo o costume antigo quando Deus queria inaugurar o novo.

  3. Cristo é a Rocha ferida e falada.
    Ferido uma vez na cruz (Hb 9:28), e agora “falado” por meio do Evangelho.
    A água que jorra é o Espírito (Jo 7:38-39).

 Conclusão

As duas rochas não são contradição, mas progressão.
A primeira revela o poder que fere; a segunda, a palavra que gera vida.
Deus ensinou a Moisés — e a nós — que a maturidade espiritual consiste em ouvir e falar segundo Sua voz, não em repetir métodos antigos.

A rocha continua a dar água, mas hoje ela responde não à vara, e sim à voz da fé.

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