Quando a Fé vira mercadoria
A fé cristã sempre caminhou melhor quando foi lenta, profunda e exigente. Desde os profetas até os pais da Igreja, passando pelos monges do deserto e pelos reformadores, o caminho espiritual nunca foi apresentado como algo rápido, confortável ou moldado ao gosto do freguês. No entanto, em nosso tempo, a fé tem sido progressivamente adaptada à lógica da sociedade do consumo, e isso exige discernimento e coragem pastoral.
A fé transformada em vitrine
Uma das analogias mais claras para compreender o problema é a da vitrine. O que antes era uma casa de formação espiritual tornou-se, em muitos lugares, um espaço de exposição. Sermões são organizados como slogans, mensagens são simplificadas para não causar desconforto, e o evangelho é apresentado como algo que precisa “agradar” para não perder público. Assim como numa loja bem iluminada, o objetivo não é formar caráter, mas atrair olhares.
No cristianismo antigo, o discípulo se aproximava para ser moldado. Hoje, muitas vezes, ele se aproxima para escolher. Escolhe a mensagem, escolhe o tom, escolhe o tipo de exigência que aceita — e rejeita o restante. A fé deixa de ser caminho e passa a ser cardápio.
O relógio no lugar do altar
Outra analogia reveladora é a do relógio. Em uma cultura obcecada por produtividade, até a experiência com Deus precisa caber no tempo cronometrado. Cultos precisam ser rápidos, orações curtas, reflexões leves. Silêncio, espera, lamento e arrependimento são vistos como perda de tempo.
No entanto, a espiritualidade bíblica sempre valorizou o tempo de maturação. Abraão esperou, Moisés passou décadas no deserto, Davi foi forjado na perseguição, e o próprio Cristo viveu trinta anos antes de iniciar seu ministério público. A pressa nunca foi virtude espiritual. Quando o relógio governa o altar, a profundidade se perde.
O cliente no lugar do discípulo
Talvez a distorção mais grave seja a substituição do discípulo pelo cliente. O discípulo aprende, obedece, permanece. O cliente avalia, reclama, troca. Quando essa mentalidade entra na fé, Deus passa a ser visto como fornecedor de benefícios, e não como Senhor da vida.
Essa lógica gera uma espiritualidade de resultados imediatos: bênçãos rápidas, respostas instantâneas, soluções sem transformação. O sofrimento deixa de ser espaço de formação e passa a ser interpretado como falha espiritual. Isso está em total contraste com a tradição bíblica, que sempre entendeu a dor, o silêncio e a perda como lugares onde a fé é provada e amadurecida.
O evangelho como herança, não como produto
A fé cristã não é um produto moderno; é uma herança antiga. Foi transmitida por gerações que viveram perseguição, escassez e renúncia. Eles não perguntavam “o que isso me oferece?”, mas “a quem pertencemos?”. Essa diferença muda tudo.
Resgatar essa visão não significa rejeitar o presente, mas submeter o presente à sabedoria do passado. A igreja não precisa competir com o mercado, nem adaptar o evangelho para torná-lo mais palatável. O que ela precisa é voltar a oferecer aquilo que sempre ofereceu: verdade, arrependimento, graça, perseverança e esperança eterna.
Um chamado à sobriedade espiritual
O desafio do nosso tempo não é tornar a fé mais atraente, mas torná-la novamente verdadeira. Uma fé que forma caráter, que sustenta na dor, que não promete atalhos, mas aponta caminhos. Uma fé que não trata Deus como meio, mas como fim.
Quando a igreja se lembra de quem sempre foi, ela deixa de imitar a lógica do consumo e volta a ser aquilo que nasceu para ser: coluna e fundamento da verdade, escola de almas, lugar de cura profunda e transformação real. E isso, embora não seja rápido nem fácil, sempre foi — e sempre será — o verdadeiro evangelho.
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